Em duas ocasiões, antes da tragédia climática e na semana passada, o chefe da Global Agência Multilateral de Garantia de Investimentos (Miga) do Banco Mundial (Bird), Antônio Barbalho, esteve no RS para apresentar soluções inovadoras de arquitetura técnica, financeira e legal com empresas e entes financiadores para mitigar os efeitos das mudanças climáticas e a transição energética no setor produtivo do Estado. Em uma das ocasiões, participou de debates na Comissão de Economia, Desenvolvimento Sustentável e do Turismo da Assembleia Legislativa.
Ele conversou com a coluna.
Como reconstruir melhor o RS após a crise climática?
O custo de reconstrução do Rio Grande do Sul é tão grande que vai levar tempo e consumir muitos recursos. O governo federal não tem esse recurso. Na verdade, ninguém tem. O problema é trabalhar a reconstrução da cadeia produtiva para poder, então, arrecadar impostos. O governo do Estado vai precisar dessa certeza. O empresariado está pedindo isso. Naturalmente, você tem que olhar para Porto Alegre e tentar resolver as questões de reconstrução da cidade. E o último ponto é que é preciso repensar a maneira como irá se lidar com a questão hídrica. Porque como está ficou provado que não funciona.
Bancos de desenvolvimento têm capacidade suficiente de ajudar?
O BNDES vai ter de financiar tudo o que precisa? O BRDE também? Acho pouco provável. Mas existem mecanismos que ajudam a alavancar recursos que você recebe principalmente de organismos multilaterais, como Banco Mundial e BID. É um tipo de recurso que é vinculado a um certo tipo de empréstimo. Tentei fazer no Brasil, mas o projeto foi cancelado por outras razões. Mas já fiz isso em muitas partes do mundo. O objetivo é alavancar o máximo de recursos possíveis para fazer a reconstrução do Estado: da cadeia produtiva do Estado, da infraestrutura social, do dia a dia das pessoas. E preparar a cidade, não só a cidade, mas as outras infraestruturas, olhando para frente. É preciso pensar fora da caixa.
Inovação?
Não tem nada de novo, mas a maneira como você aplica é nova. A maior parte dos profissionais, talvez, não estejam acostumados a isso: pensam mais no que está disponível na Faria Lima ou no Ministério da Fazenda. Estou falando muito além disso: de se pensar como lá fora. Se é possível fazer com que um dólar que a gente enprega em um projeto na África alavancá-lo e transformá-lo em três, por que não posso fazer isso no Brasil? Claro que eu posso. Mas, para isso, você tem de ajustar um pouco a maneira de se pensar.
Mas construir com maior resiliência não vai ficar mais caro?
As pessoas falam que o custo vai ser altíssimo, cinco vezes maior. Não vai. Quando você aumenta em 10% o custo de uma obra, você consegue embutir os componentes de resiliência. Quando você coloca isso, você reconstrói melhor, deforma mais resiliente. Agora, vamos definir resiliência: para lidar com o que aconteceu recentemente, sim, mas e se acontecer pior? Como faz? Então, existem outras coisas que você precisa repensar em termos de resiliência. Tenho certeza de que tem uma universidade aí no Rio Grande do Sul que olha isso. Já se pensou fazer um canal em um determinado área (do delta), que livre Porto Alegre (da enchente)? É possível? Tem gente que pensa isso. Vai ter impacto ambiental? Vai, não tenho dúvidas. Mas qual é o impacto? Bom, se você não pensar diferente, não tem como saber.
Um canal que jogue a água do Jacuí, por exemplo, direto na Lagoa dos Patos, sem passar pelo Guaíba? Como o projeto Room for the River (Espaço para o Rio), feito pela Holanda, por exemplo?
Exatamente. Existem certas experiências que poderão inspirar os profissionais a olhar situações de uma perspectiva diferente. Morei em Londres, e, no Rio Tâmisa, tem uma eclusa. Caso contrário, o Mar do Norte invade Londres e bota a metrópole debaixo d'água. O Guaíba, em determinado ponto, tem isso. Essa é a solução? Não sei. Eu estou dizendo que é possível de ser investigado. O que eu estou dizendo é que você precisa olhar fora da caixa, numa perspectiva diferenciada.
Em termos de governança, muitas vezes se vê diferentes entes - governos municipais, estadual, federal e empresários com muitas iniciativas, mas pouca convergência de ideias.
Existe um vácuo em termos de liderança. Não quero comentar a política, mas posso compartilhar o que vi lá fora. Todas as grandes ações que tenho a oportunidade de ver, por mecanismos diferentes, tiveram oportunidade de colocar lideranças, tanto do setor privado quanto do setor público e a classe política, reunidas em determinada direção. Algumas vezes deu certo, por exemplo, na África do Sul, do Nelson Mandela, que prosperou de uma maneira muito forte. Mas em outros lugares você vê que o efeito foi o contrário. O desafio que eu observo é que nós estamos vivendo num mundo bastante fragmentado.
Há pessoas extremamente competentes aí, mas é preciso começar a construir um projeto Rio Grande 2050.
Como governos e empresários podem se alinhar em cima de uma ideia?
O desafio é que não se tem essa ideia para você começar a dialogar. Há pessoas extremamente competentes aí, mas é preciso começar a construir um projeto Rio Grande 2050. A alinhar isso em uma direção na qual os resultados possam vir, mesmo que seja devagar no início. Quando houver esse entendimento, será possível começar a pensar em uma mudança social interessante. O RS tem uma agricultura, vinicultura, indústrias fantásticas. O pivô para alinhamento precisa ser algo em que a classe empresarial entenda e seja confortável. Falta uma ideia que possa atrair os diversos segmentos em função de uma determinada reação que seja boa para todos. Essa construção eu não vejo. Eu acho extremamente fragmentada. Resta, então, trabalhar com as agulhas e linhas que lhe dão. Nós temos que dar uma resposta ao pessoal que está sem habitação hoje, amanhã é muito tarde. Então, essa dualidade: olhar o imediato, sem perder o olho no horizonte, é algo bastante desafiador.
Qual foi o segredo dos EUA ao fazerem o Built Back Better?
Começaram com o básico: "a ponte está quebrada? Vamos consertá-la. E melhor". "A linha de ferro foi danificada? Vamos consertá-la." Você não vê nenhuma ação que seja transformadora, a princípio, assiste apenas aquelas que colocam a infraestrutura de volta, mas ao mesmo tempo fazem um capital circular, ou seja, o Estado começa a receber recursos. Você faz a economia começar a circular. A gricultura e a agroindústria sustentam a economia gaúcha. Com ações específicas, possíveis de serem tomadas tomar, olhando para o futuro, essa transformação poderia acontecer em 10 anos. É um processo lento, mas hoje, agora, tem de ser feito.
Atuando em duas velocidades?
Exato. Quem tem a resposta? Ninguém. Por conta da fragmentação que a gente vive, o alinhamento de ideias não é fácil.
Ainda mais em ano eleitoral.
A experiência de trabalhar em organismos multilaterais nos diz, muito cedo, quando um país vai poder reagir na direção que precisa e quando isso irá ocorrer. Normalmente, há uma reação inicial, mas, passam-se dois anos, e só então começa o alinhamento. Só que nesse período as ideias mudam, os problemas são outros e maiores. O ponto é o que é considerado pelo empresariado gaúcho, tanto da agroindústria como da indústria, como relevante, aplicável, verificável, viável, no curto prazo. O que é que é possível? Baseados nessas condições, o empresário se posiciona. Vai haver geração de receita, o governo do Estado vai poder fazer outras coisas. Sem receita, não pode fazer nada.
Pela sua experiência, baseado nessa comparação com um país, o Estado consegue se reerguer?
Todos os organismos multilaterais fazem uma avaliação do país a cada quatro, cinco anos. O Banco Mundial chama Country Partnership Framework. Você consegue ver diversas dimensões da atividade econômica e coletiva do país. A ideia é usar os recursos da multilaterais que possam causar o melhor impacto e desempenho nos projetos que estão sendo pensados para aquele país. Os recursos que os bancos multilaterais têm são limitados. Principalmente para a América Latina. Eu continuo com o mesmo dólar para aplicar no governo do Sul. O que é que eu tenho que fazer para fazer esse dólar virar em três? Existem mecanismos financeiros para isso. Mas a demanda que se identificou antes do evento climático era uma. Agora, ela vai ser multiplicada por dois. Então, o recurso multilateral, complementa. Não é estruturador, não é transformador, então, o desafio aqui é como pegar esses recursos que estão, de certa forma, colocados, compartilhados com recursos do BNDES, do BRDE, e fazer toda essa arquitetura para maximizar a quantidade de recursos. Eu não diria reconstruir, mas acelerar o que se tem, para exatamente ver o que é possível.