O jornalista Vitor Netto colabora com o colunista Rodrigo Lopes, titular deste espaço.
Há pouco mais de dois meses, o Rio Grande do Sul enfrentou sua maior catástrofe climática da história. Apesar de locais e cenários diferentes, os eventos têm suas semelhanças e vêm se repetindo. Com mais de 30 anos cobrindo pautas de mudanças climáticas por todo o mundo, a coluna conversou com a jornalista da Rede Globo Sônia Bridi sobre a atua situação.
Você acompanhou o assunto há muito tempo. O que você tem percebido de similaridades entre os eventos?
Eu acho que tem uma coisa, sim, que todos esses eventos climáticos, eles se encaixam naquela carteirinha de coisas que os cientistas já estavam falando que iam acontecer. Os cientistas diziam que teríamos enchentes intensas e que fenômenos que eram extremamente raros se tornariam mais comuns em termos de intensidade. Então, tivemos enchentes muito intensas, repetidas, em curto espaço de tempo, coisas que seriam dentro da normalidade, um evento extremo que pode acontecer, mas dentro de dezenas, às vezes centenas de anos. Onda de calor: vimos a notícia de que uma onda de calor, ainda mais intensa do que os indianos estão acostumados a enfrentar, que provocou uma situação em que as pessoas se apavoraram num festival religioso e várias pessoas, principalmente mulheres e crianças, morreram pisoteados. Estamos vendo um macaco cair da árvore, morto por causa do calor. Vimos golfinho sendo cozido dentro da água quente do lago na Amazônia. Vimos secas históricas, incêndios em proporções imensas no mundo inteiro. Estamos vendo, na Sibéria, buracos que estão se abrindo, imensos, porque o permafrost (camada do subsolo da crosta terrestre) está derretendo. Então esses eventos extremos que já estavam descritos que iriam acontecer, estão acontecendo muito antes do que se esperava e de uma maneira mais intensa. Eu acho se não tiver um despertador mais forte que esse para as pessoas acordarem, eu não sei o que mais precisa.
São vários eventos diferentes, eventos diferentes acontecendo ao mesmo tempo. E cada cenário diferente...
A própria Alemanha também teve enchente agora, então é uma coisa que está espalhada pelo mundo inteiro, ninguém consegue mais prever. A característica desses eventos é que eles são extremos, que não é uma sequinha, é uma megasseca. Não é uma enchente, é uma megaenchente. O que a gente viu, essa enchente que a gente viu na Itália essa semana, é uma coisa assustadora. São os eventos extremos, que não acontece só por causa da mudança do clima. A mudança do clima ela potencializa as coisas, mas se você tem uma região onde o solo que devia ser preservado para absorver a água, ele foi impermeabilizado, foi usado, virou outra coisa, você vai ter essa enchente mais intensa. Se você tem um Pantanal seco e você tem gente botando fogo, substituindo o pasto nativo e a mata por pasto plantado, você mexeu na vegetação, você tornou mais vulnerável. No Pantanal, agora, você vê as queimadas, elas estão muito concentradas na região de Corumbá, que é onde está havendo um avanço muito grande, muito agressivo, de gente que já tinha plantação no Planalto, que é um outro tipo de cultura de relação com a terra, compraram terras mais baratas no Pantanal para tentar fazer plantação de soja ou criação intensiva de gado. A criação extensiva de gado convive com o Pantanal há séculos e não é nociva. Aí você chega, bota abaixo as cordilheiras ou faz o que foi feito, que o Fantástico denunciou isso de uma maneira assim muito clara, passa um avião com veneno agrícola, mata toda a floresta e aí bota fogo. Quem controla isso? Incêndio numa floresta completamente queimada por veneno agrícola, por veneno desfolhante. O que estamos vivendo hoje é a mistura da ignorância do passado, em que muita coisa foi feita, que não sabíamos que estava mexendo com a atmosfera, com a estupidez e a ganância do presente, que segue como se não houvesse consequência das nossas ações. Nós continuamos queimando petróleo e carvão como se não estivesse acontecendo nada, nós continuamos desmatando como se isso não trouxesse consequências, e depois está tendo consequências terríveis. E aí o prejuízo é coletivo e o lucro é de dois, três.
Como você acompanhou o evento do RS? Teve semelhanças ou diferenças com outros eventos?
O tamanho da cheia, a área atingida, a rapidez com que aconteceu, a força com que a água desceu da serra Gaúcha, passando por lugares como o Vale do Taquari, são coisas que eu nunca tinha visto nada igual. O que eu vi ali foi o que havia de pior nas previsões do clima, tudo acontecendo, e eu juro para você, eu sou uma pessoa que cobra essa questão há mais de 30 anos, eu sabia dos perigos, sabia como seria, sabia dos modelos climáticos e tudo, inclusive dos modelos climáticos que diziam que ia acontecer no Rio Grande do Sul, como se comportaria o clima, mas quando vemos acontecendo já e nessa intensidade, é uma coisa assustadora.
Saiu semana passada uma pesquisa, que apontava que, em primeiro lugar, as pessoas culpavam em primeiro lugar os governos municipais e em segundo lugar se culpavam. A imprensa, e você, fala disso há 30 anos. O que que falta mudar na cabeça das pessoas?
Eu acho que uma das razões das pessoas se sentirem culpadas é pelas péssimas escolhas que elas fazem quando votam. O Congresso Nacional tá cheio de negacionista do clima. Os criminosos do clima, os criminosos ambientais, eles não são punidos. E eles têm apoio oficial, eles têm apoio dos governadores, eles têm apoio dos prefeitos, eles têm apoio no Congresso Nacional, têm apoio no Governo Federal. Então, tudo isso tá acontecendo porque não estamos fazendo as escolhas certas de botar para cuidar do nosso futuro quem consegue compreender a gravidade do futuro que nos aguarda. Mas ao mesmo tempo, eu não seria assim tão dura com essas pessoas, porque as campanhas de desinformação, elas são brutais. Mesmo durante a enchente no RS, havia gente se dedicando não a mobilizar esforços e ajuda, não a salvar alguém, não a conseguir verbas para ajudar os gaúchos. Eles estavam dedicados a disseminar ódio, informação falsa. Não podemos falar que não é hora de apontar culpados. Tinha um meme que eu acho que é muito correto: "Não é hora de apontar culpados, assinado os culpados". Porque quem mais se interessa em não apontar culpados e não apontar responsabilidades? A prefeitura que permite a construção em áreas de beira de rio, áreas alagadas, é responsável. O Estado que permite o desmatamento de áreas que deveriam ser de preservação, é culpado. O produtor rural que desmata a área de beira de rio e de nascentes, é culpado. Mas muitos desses prefeitos e desses produtores, teve gente garantindo para eles que isso tudo era maluquice de esquerdinha, "esquerdopata", ambientalista. Agora, muitos tinham condições de buscar informações de verdade e não buscaram. Então, eu acho que é hora de apontar responsabilidades, no sentido de dizer: "olha, ou vocês vão levar a sério a ciência, ou vocês vão ter que assumir a responsabilidade pelas mortes". Porque agora é uma questão, há muitos anos eu digo, a questão climática não é um problema do urso polar, é um problema nosso, a nossa segurança. Nós dependemos do urso polar estar bem, para estarmos bem. Nós dependemos de não derreterem as calotas polares, pra água não invadir. O que vai acontecer com o derretimento das calotas polares? Aumentando mais meio metro o nível do mar, o que vai acontecer com Pelotas, com Porto Alegre, com cidades que estão muito baixas? Então, não é um problema do urso polar, é um problema nosso, é a nossa segurança. E quem nega a ciência nesse momento, está contratando a morte.
Climatologistas e ambientalistas falam que esses eventos cada vez mais vão estar mais frequentes. Falta prevenção? Ações "pré" evento?
Sim, tem que ter. Tem que ter em várias frentes. Você precisa ter um investimento grande agora em mapear as zonas de maior risco, retirar, seja o que for, indústria, comércio, residências dessas áreas, garantir que as pessoas vão ter acesso a lugares mais seguros para erguer suas casas, seu comércio, suas indústrias, para a economia poder funcionar, para as coisas funcionarem. É preciso haver restauração ambiental de muitas áreas. Sabemos que a vegetação funciona como um freio para a água. É preciso haver uma zona de proteção do rio, do riacho, do córrego, da fonte. É preciso também que a Defesa Civil se prepare de maneira muito mais profissional, muito mais organizada para enfrentar esse tipo de situação, não só no Rio Grande do Sul, mas no Brasil inteiro. O meu estado, Santa Catarina, tem uma tradição de ter uma Defesa Civil mais preparada do que a média do Brasil. Uma coisa que eles fazem lá, já fazem a contratação, a licitação de casas emergenciais, por exemplo. Deixa licitado, se usar, usou, se não usar, não usou, mas tá licitado e tá num preço licitado, justo, sem precisar fazer emergência, sem precisar fazer aquele negócio, dispensa a licitação, faz compra de emergência, sempre rola corrupção. É preciso ter as sirenes, é preciso ter o sistema de alerta, é preciso levar a sério o sistema de alerta. A meteorologia tem 100% de acerto, até porque, e isso é uma coisa importante que as pessoas entendam, porque os meteorologistas também estão vivendo num mundo diferente, em que o tempo se comporta diferente do que era antes. Só vou dar um exemplo para você: teve um furacão que chegou na costa oeste do México no ano passado. Em apenas 24 horas, esse furacão saiu de tempestade tropical a furacão categoria 5, que é o mais mortal que existe, em 24 horas. Estamos acostumado a ver esse processo se desenrolar ao longo de duas semanas. As pessoas vão vendo, o furacão vai ficando maior. Então eles chamam aquilo de furacão, bomba, agora também estão vendo a formação de furacões categoria 6, porque eles passam aquela categoria do máximo do furacão que estávamos acostumado a ver. Então, para os meteorologistas, também é um mundo novo, também é um mundo cheio de surpresas. Quando eles dizem a probabilidade de que isso aconteça, acredite que a probabilidade exista. Faça o que tem que ser feito para se proteger e para proteger os seus cidadãos, no caso das autoridades.
Qual a importância da educação e da imprensa neste momento?
São fundamentais. Qualquer política pública que tenha um pingo de responsabilidade é uma política pública que respeita a ciência e que espalha o conhecimento científico. As crianças precisam aprender a ver os sinais para poder se proteger. Tem um exemplo muito clássico de uma situação que aconteceu no tsunami lá do sudeste da Ásia: uma criança na Tailândia que viu o mar retrocedendo e começou a gritar "tsunami, tsunami,", porque ela tinha visto na sala de aula que antes do tsunami o mar retrai. E salvou dezenas de vidas por causa de uma aula. Então é preciso que tenha educação ambiental, sim, que as crianças entendam as situações e, principalmente, que as nossas autoridades se eduquem e tomem decisões de política pública baseadas em educação, em conhecimento e em ciência. Senão, o que vai acontecer é que você constrói uma ponte hoje, ela cai amanhã, você constrói a escola, é destruída, e assim nunca vamos sair do ciclo de miséria e desigualdade que tem nesse país, de infraestrutura meia boca, para ser generosa, que é o que temos nesse país. Precisamos de muita infraestrutura para se tornar um país desenvolvido. E se tivermos que gastar todo o dinheiro que temos para consertar, para refazer o que já estava feito, porque é feito sem levar em consideração a ciência, nunca vamos deixar de ir para frente e o perigo de retroceder. As nossas condições de vida vão retroceder.