Um estudo inédito realizado pela World Weather Attribution (WWA) concluiu que as mudanças climáticas dobraram a probabilidade de ocorrência de chuva como a que devastou o Rio Grande do Sul. O trabalho feito por pesquisadores de Brasil, Reino Unido, Suécia, Holanda e Estados Unidos e divulgado nesta segunda-feira (3) revelou que o El Niño teve um papel fundamental.
Esse é o aspecto que ganhou ampla repercussão nacional e internacional. Mas há outra conclusão da pesquisa, com o olhar no futuro, que é ainda mais preocupante. O estudo foi feito com base na elevação da temperatura média do planeta em 1,2°C em relação ao período pré-Revolução Industrial, que já é uma realidade. Quando os cientistas projetam na mesma amostragem a temperatura média de 2°C acima, algo que o mundo precisa evitar, a probabilidade é de que ocorra chuva como a que atingiu o Estado a cada 20 ou 30 anos.
Quem alerta é a professora Regina Rodrigues, pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que participou do estudo.
A análise levou em consideração a precipitação em dois intervalos de tempo: de quatro dias, 29 de abril a 4 de maio, e de 10 dias, de 26 de abril a 5 de maio. Ambos os eventos foram considerados extremamente raros no clima atual, ocorrendo aproximadamente uma vez a cada cem anos. Nos dois cenários, a crise climática aumentou em mais de duas vezes a probabilidade de ocorrência da chuva extrema no Estado e a tornou de 6% a 9% mais intensa. A seguir, trechos da entrevista com a pesquisadora.
Como foi possível fazer esse trabalho denso num curto período em tão pouco tempo?
A pesquisadora líder, que é a Friederike Otto, do Imperial College, em Londres, estava na Universidade de Oxford e ouviu de um jornalista: "Vocês, cientistas, fazem o estudo de um evento extremo e vão publicá-lo daqui a dois anos. Na mídia, para a gente conseguir mudar a opinião pública em relação às mudanças climáticas, tem de fazer isso imediatamente, quando ainda está no interesse público". Desenvolvemos uma metodologia para fazer atribuição: como analisar um evento extremo e dizer o impacto das mudanças climáticas. Essa metodologia está publicada como estudo científico, foi revisada pelos pares.
Como é aplicada?
Eles escolhem os eventos extremos dependendo da importância. No caso do RS, teve um impacto muito grande, tanto econômico quanto de perda de vidas. Uma vez qualificado, eles aplicam a metodologia. Então, chamam pesquisadores locais. Porque é necessário que se tenha pessoas que conheçam a física e o clima local. Eles fazem isso para a Arábia Saudita, fizeram para Índia.
Vocês, da UFSC, entraram com o conhecimento da região?
Sim, porque tenho vários estudos do impacto do El Nino na América do Sul. Não só na precipitação do Sul, mas também de secas no Nordeste. Já orientei alunos sobre eventos extremos de chuva em Santa Catarina. Esse evento no RS e os que ocorreram no passado em Santa Catarina estão relacionados com o El Nino, têm a mesma característica.
O Katrina ocorreu em 2005. Passaram-se 20 anos, New Orleans ainda não se recuperou totalmente
REGINA RODRIGUES
pesquisadora da UFSC
A principal conclusão é que as mudanças climáticas tornaram a chuva no RS duas vezes mais provável.
O que ocorreu é um evento muito raro, mas, com as mudanças climáticas, vai ficar mais frequente, menos raro. É um problema sério, a chuva vai ficar mais intensa. O El Niño já fez esse evento ocorrer antes do que deveria e mais intenso do que deveria. No Imperial College, há um grupo de pessoas que também analisa a parte de vulnerabilidade e da exposição (das populações). Uma coisa é o evento físico da natureza e a outra é o impacto que ele causa, as falhas que ocorreram que poderiam ter minimizado os impactos.
Voltando à metodologia, como é possível atribuir o fenômeno às mudanças climáticas?
A gente usa quatro grupos de dados. A gente faz a análise do evento, como ele ocorreu, na condição atual, com efeito do aumento de 1,2°C (na temperatura média do planeta em relação ao período pré-Revolução Industrial). Depois, a gente retira o efeito de 1,2°C. Então, a gente analisa como teria sido se a atmosfera estivesse mais fria e avalia quantas vezes apareceu, a partir das mudanças climáticas, um evento como esse, com a intensidade, proporção e extensão espacial. Dobrou a ocorrência, porque ocorreu uma vez só quando não havia as mudanças climáticas e agora ocorre duas vezes. Alguém pode falar: "Ah, é pouco. Se ocorreu uma vez em cem anos, agora vai ocorrer duas". Mas veja a proporção do impacto do que ocorreu agora no RS.
Vocês fizeram também uma projeção se a temperatura média do planeta subir a 2°C.
Se chegar até 2°C, esse evento vai ocorrer uma vez a cada 20 ou 30 anos. Acho isso muito importante. Imagina se Porto Alegre e região sofrem uma outra situação como essa daqui a 20 anos. Eu estava morando nos Estados Unidos quando o Katrina ocorreu e fui duas vezes para New Orleans em congressos depois disso, inclusive em fevereiro de 2024. O motivo por que essas conferências ocorrem lá é para tentar estimular turismo na região, para ainda levantá-la desde o Katrina. Há áreas que nunca se recuperaram. Tem bairros inteiros que nunca foram reconstruídos em New Orleans. Muita gente nunca mais voltou a morar naquela região. A cidade ainda sofre com o que ocorreu. O Katrina ocorreu em 2005. Passaram-se 20 anos, e eles ainda não se recuperaram totalmente. E é um país muito mais rico do que o Brasil. Imagina se isso começar a ocorrer cada 20 anos no RS.
É bem preocupante.
Passando de 2°C, não vai ser só isso. Vai haver secas, com as quais o Rio Grande do Sul também sofre bastante, as ondas de calor. É todo um coquetel de extremos.
O trabalho aborda a falta de manutenção e investimentos em mecanismos de prevenção como fatores importantes para que o desastre tenha tomado proporções tão grandes. Quem passou essas informações?
Não fomos nós. Tem pessoas da Cruz Vermelha Internacional envolvidas. Eles têm um grupo que olha exatamente todas essas informações e estatísticas do evento pelo aspecto humano, de exposição e vulnerabilidade. A mensagem é: se não houvesse mudanças climáticas, esse evento teria sido um pouco menos intenso, mas também teria sido ainda assim grande.
E os impactos poderiam ter sido minimizados.
A gente vai ter eventos de chuva. Podem ocorrer daqui a 20 anos, se houver prevenção, o impacto vai ser menor. Em 2003, na Europa, teve uma onda de calor, que ainda hoje é uma das mais fortes com muitas mortes, o maior número foi na França, principalmente em Paris, e depois na Alemanha. A maioria dos mortos era de pessoas idosas, que estavam sozinhas e rapidamente desidrataram. Daquele evento, aprenderam um monte de coisas. Agora, ocorrem ondas de calor cada vez mais frequentes, mas não se vê o mesmo número de mortos. Com as mudanças climáticas, quase todos os anos há ondas de calor. As mortes diminuíram, o impacto diminuiu. Eles têm avisos, alertas em cores na internet: amarelo, laranja, vermelho: "Tomem bastante água". Eles já estão mais preparados, aprenderam as lições.
É adaptação e resiliência. Santa Catarina fez isso.
A Defesa Civil de Blumenau é um exemplo. Eles estão fazendo isso desde o início dos anos 1980, com a grande enchente. Já tem a escola, ginásio (para serem usados como abrigo), colchões. A Defesa Civil de Santa Catarina tem sete ou oito empresas na lista, automaticamente, com os preços de produtos da cesta básica disponíveis. Eles já entram em contato e compram o que sabem que vão ter aqui. É uma coisa simples. Obviamente, é preciso pôr dinheiro na Defesa Civil do Estado. Não é uma obra faraônica. É coordenação. São coisas que, teoricamente, são baratas.