Em 6 de maio, com boa parte de Porto Alegre submersa, eu, o repórter fotográfico André Ávila, o jornalista Carlos Etchichury e o professor Demétrio Luis Guadagnin, pesquisador do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), percorremos de bote os principais cartões-postais do Centro Histórico. Voluntário, o pesquisador nos guiou por um tour do terror. A lembrança do silêncio, quebrado apenas pelo som do remo tocando na água na Mauá, a outrora frenética avenida da Capital, me atormenta ainda hoje, quase um mês depois.
Na quarta-feira (29), com o Guaíba recuando, refiz o trajeto, desta vez a pé. Na esquina da Rua Caldas Jr. com Andradas, onde colocamos nossos botes na água, o chão está, finalmente, seco. Restou tanta lama, que é preciso cuidado ao caminhar. Na Praça da Alfândega, as imagens de Carlos Drummond de Andrade e Mario Quintana, que naquele dia "conversavam" com água pelo joelho, agora tem apenas limo. Mais ao centro, é possível identificar as estruturas que tocavam o fundo dos nossos botes: o alambrado do chafariz e os degraus do monumento ao Marechal Osório, além, é claro, dos bancos da praça, que estavam parcialmente submersos. Há muito resto de galhos e troncos cerrados pelo chão.
Pela Rua General Câmara, alguns comerciantes retiram sacos de areia das portas, enquanto outros varrem o barro para fora. O ruído de geradores e das bombas sugando o Guaíba de dentro dos prédios toma conta do ar e junta-se ao barulho de retroescavadeiras e caminhões. A caminho do Paço Municipal, pela Uruguai, naquele 6 de maio era possível tocar o teto das paradas de ônibus. Bastava esticar um pouco o braço. Tudo tem a marca da água: paredes, vidraças, placas de trânsito tortas.
Caminhando, percorro as ruas do Centro de forma muito mais rápida do que remando. Em frente ao prédio da prefeitura, lembro de ter perguntado a Demétrio a profundidade. Ele mergulhou o remo na água podre até tocar o chão: um metro e 70. As marcas do nível da enchente registradas na fachada do Mercado Público confirmam. O cheiro de podre, que naquele dia provocava náuseas, hoje não existe nem próximo aos portões do prédio, por onde havia frutas e verduras boiando. Resta, claro, muita umidade.
Pelo Terminal Parobé, acessa-se a Julio de Castilhos. Em direção à Rodoviária, há tanto entulho nas calçadas que parece que um gigante esmagou sofás, refrigeradores e prateleiras.
Além do silêncio daquele dia, outra lembrança me assombra: à medida que íamos avançando em direção ao que seria o leito normal do Guaíba, havia água por todos os lados. Nos distanciávamos várias quadras do naco de Porto Alegre que ainda tinha terra firme. As placas das ruas estavam próximas de nossos ombros. O topo do Muro da Mauá estava a um braço de distância. Esticando-se o pescoço, era possível enxergar o outro lado. Hoje, o trânsito na Mauá ainda é limitado. Por isso, é possível caminhar por longos trechos em meio ao vazio. A Travessa dos Cataventos, que une a Sete de Setembro à Andradas, cruzando a Casa de Cultura Mário Quintana, está seca, e funcionáros trabalham na limpeza. Espio-se através dos vidros, e os estabelecimentos que tinham água até um metro do chão estão secos.
Na Rua da Praia, a vida começa a voltar. Comerciantes resistem. As luzes dos letreiros são reacesas. Próximo à Caldas Jr., reencontro Jorge Faut, síndico de um prédio cujo hall foi invadido pela água. Naquele dia 6 de maio, ao ver nossos botes, Jorge pediu ajuda para retirar a mãe, Dorcélia, 81 anos, há 50 deles morando a duas quadras do Guaíba. Demétrio, nosso guia, concordou com o socorro. Eu e Dorcélia nos conhecemos pelo facho de luz de uma lanterna em meio à escuridão do edifício inundado. Ela saiu em um dos nossos botes. Deixou para trás seus cães, que Jorge resgatou no dia seguinte. Dorcélia passou quase três semanas na casa de familiares na Zona Sul. Voltou no sábado passado. Hoje, com energia elétrica, quase tudo está normal no prédio. O hall está iluminado e limpo. Dorcélia, no 14º andar, está sorridente.
— Agora estou feliz, voltei pra minha casinha — diz, abraçada a Pity, uma pinscher, enquanto tenta controlar, no chão, Fiona, a shitzu.