Com tantos problemas a desafiar a humanidade nesta terceira década do século 21, nenhuma democracia do mundo deveria perder tempo discutindo o papel das forças armadas em um Estado de Direito. Nem quando as instituições dos Estados Unidos sofreram seu maior teste de estresse, no ataque ao Capitólio, em 6 janeiro de 2021, debateu-se o papel da caserna naquele dia infame. Está muito claro, em democracias maduras, o papel do soldado deve estar a serviço do Estado. Não de governos. É em republiquetas que Forças Armadas e política se misturam, exatamente em países onde Exército, Força Aérea e Marinha escolheram eleger inimigos internos.
Não precisávamos estar debatendo nada disso, mas, já que estamos vivendo tempos em que o óbvio precisa ser dito, lá vai: o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) que deve rechaçar a interpretação segundo a qual, pelo artigo 142, militares estariam autorizados a intervir em caso de disputa entre os Poderes da República, ganha status de histórico. A Corte formou maioria na segunda-feira para revogar tal hipótese.
Antes de dar início ao julgamento propriamente dito dois esclarecimentos. O primeiro deles é que operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) deveriam ser exceções - quando há falência das forças de segurança. Aliás, se o país tivesse um aparelho policial funcionando bem, haveria poucas ações desse tipo. Usar tropas treinadas para a guerra contra o crime em zonas urbanas é ruim para os próprios militares, porque os objetivos são diferentes: em um guerra, a missão de um efetivo é o extermínio da força oponente. Ou seja, soldados são treinados para matar - não para prender. Outro esclarecimento: a prerrogativa do presidente para emprego das Forças Armadas em GLO não pode ser exercida contra os outros poderes.
Dito isso, voltemos ao artigo 142 da Constituição, que afirma: "As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem".
A sentença precisa ser reescrita para que fique mais claro que as Forças destinam-se à defesa da Pátria "contra inimigos externos", e que quem garante os poderes constitucionais é a Constituição em si. Não há poder moderador.
A ação movida pelo PDT para esclarecer as limitações da atuação militar é uma oportunidade para o país dar início a um trabalho de despolitização da caserna. Obviamente, esse não deve ser um assunto apenas do Supremo, do Legislativo ou do Executivo. Cabe ao Alto Comando fazer esse trabalho, e um bom começo seria pela revisão da doutrina da Escola Superior de Guerra (ESG). Ato contínuo, a análise do currículo do ensino e dos livros didáticos utilizados nos Colégios Militares espalhados pelo país. As Forças Armadas não podem ter o monopólio do ensino sobre o que seria a "sua versão" sobre História do Brasil. Até porque não há duas Histórias.