Gaúcha de São Gabriel, a ministra Liliam Chagas de Moura conhece por dentro as negociações na conferência mundial do clima, a COP28, em Dubai. Como número 2 da delegação do Itamaraty, braço direito do embaixador André Corrêa do Lago, a diplomata passa a maior parte do tempo fechada em salas da ExpoCity conversando com representantes de outros países. Sabe, como poucos, o que ocorre nos bastidores: o que cada nação coloca na mesa, os interesses brasileiros e o que está em jogo.
Desde que deixou o posto na Embaixada do Brasil na Cidade do México, ela é diretora do Departamento de Clima do Ministério das Relações Exteriores, em Brasília. Na COP28, Liliam conversou, com exclusividade, com a coluna.
Como ocorrem, na prática, as negociações? Vocês passam os dias fechados em salas, como se fosse um conclave?
As negociações avançam de uma COP para outra. No meio do caminho, em Bonn (Alemanha), sede do secretariado (da ONU), tem uma "miniCOP", onde também avançam. Entra um assunto na agenda, que todo mundo concorda em tratar, e se estabelece um plano de trabalho, diálogos técnicos, discussões, para que se tente um acordo para que se torne fonte de uma política pública nos países. Sempre no sentido de mitigação, de reduzir emissões de gases de efeito estufa, adaptação, que é como os países e cidades vão se adaptar para casos de eventos climáticos extremos, como as enchentes horríveis que ocorreram lá no Estado, e financiamento, que é como gerar os recursos necessários. Esse último significa a obrigação dos países desenvolvidos de colocar recursos nos fundos do clima para que nações em desenvolvimento financiem suas políticas de transição e seus planos de adaptação.
Todo mundo tem de aceitar todas as decisões. Porque cada país precisa pegar esses textos e aplicar políticas nacionais.
Lá dentro das salas, vocês votam em determinadas decisões?
Não tem votos. É por consenso. E são 198 Estados-parte. Às vezes, um ou outro fica isolado, e a maioria o leva a "não dizer não". Todo mundo tem de aceitar todas as decisões. Porque cada país precisa pegar esses textos e aplicar políticas nacionais. Então, tem de ser aceito, não, obrigado.
E como são as reuniões?
Ocorrem em salas imensas de 500, 600 metros quadrados, na forma de mesas. Você entra, pega a placa do seu país, senta, e começam as discussões. "Vamos por aqui, por ali". A gente discute os textos das decisões. No final da COP, vai sair um conjunto de decisões. E a mais importante é o primeiro balanço geral do Acordo de Paris.
O que de pior pode acontecer ao final dessa COP28?
Seria não haver acerto sobre esse balanço do Acordo de Paris. No artigo 14, o pacto fala que, em 2023, os países precisam fazer um balanço, para ver se o acordo está funcionando. Precisam prestar contas sabermos se as emissões estão diminuindo ou se estão em uma curva ascendente e se os países estão conseguindo usar seus recursos.
Que resultados a senhora espera?
Primeiro, o balanço geral do Acordo de Paris, segundo o fundo de perdas e danos, que já foi aprovado no primeiro dia, um grande resultado. O terceiro é a decisão sobre um objetivo global de adaptação, diretrizes que ajudem os países a fazer política de adaptação. Em quarto lugar, uma discussão sobre uma nova meta coletiva financeira global. Havia uma meta de 2009 de US$ 100 bilhões anuais que os países desenvolvidos tinham de colocar em um fundo.
E que não cumpriram...
Agora, está mandatada para ser adotada no ano que vem essa nova meta: quanto é? US$ 100 bi? Se a gente não conseguiu nem realizar esses US$ 100 bi, qual a nova meta? Fala-se em trilhões de dólares. De onde vai sair? Serão só os desenvolvidos que vão conseguir colocar ou vamos ter de reformar os sistemas dos bancos internacionais de desenvolvimento? Como alavancar o financiamento privado para que entre também no esforço de financiar projetos de mitigação? A decisão aqui em Dubai da nova meta vai avançar um pouquinho em algumas direções para que, no ano que vem, essa nova meta seja adotada.
(A melhor notícia) seria um bom balanço do Acordo de Paris: realista, significativo.
Qual seria a melhor notícia da COP28, ao final?
Um bom balanço do Acordo de Paris: realista, significativo. O IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, da ONU) indicou que o mundo não está no bom caminho de alcançar no máximo 2ºC, 1,5ºC ideal (em relação à temperatura média do planeta pré-Revolução Industrial). Como a ciência está mostrando que a temperatura continua aumentando, ninguém quer chegar a um ponto de não retorno porque não se sabe se é possível, depois, resgatar a saúde de um bioma, sejam as geleiras, o mar ou o colapso da Amazônia.
Percebe-se um senso de urgência.
O objetivo já não é mais o 2ºC (o limite). Passou a ser 1,5ºC. Todo mundo concorda com isso, porque passando disso pode ficar muito grave.
Por que esse balanço de emissões é tão importante?
Porque esse balanço será a base para os países, em 2025, atualizarem suas metas nacionais (NDCs). Nas negociações, avalia-se: "Não estamos no caminho", tem um pouco lavar a roupa suja, fala-se sobre o que deveria acontecer, o que não está acontecendo, e para onde se deve ir.
Tem-se discutido até quase 23h, meia-noite, quase todos os dias. Está avançando. É difícil entrar em um acordo.
E já é possível ter uma ideia sobre para onde as negociações estão caminhando?
As discussões vem acontecendo há dois anos. Há muitos desacordos em algumas questões. As negociações estão pegando no tranco. Tem-se discutido até quase 23h, meia-noite, quase todos os dias. Está avançando. É difícil entrar em um acordo. Ninguém quer ter o dedo apontado contra si. Uns querem um balanço mais positivo, outros querem um mais realista.
Mas são dados concretos, cada país apontando o seu balanço de emissões?
A gente tem de acordar um texto, o que vai ser escrito. O que vale são os dados reconhecidos pelo IPCC (de emissões de cada nação). O país até pode ter suas métricas, mas o que vale é o conjunto dos cientistas, que pegam estudos do mundo inteiro.
A partir dessas métricas, vocês escrevem um texto?
Ou que peso a gente vai dar para as emissões históricas, ou o que precisa fazer de agora em diante. Pode haver a reclamação: "A gente combinou que os países desenvolvidos iam dar US$ 100 bi, cadê os US$ 100 bi? Não apareceram. Então, como querem que eu consiga fazer uma transição se não tenho de onde tirar dinheiro". Não é justo países em desenvolvimento se endividarem para aplicar em novas energias, porque o combinado era que os desenvolvidos colocariam dinheiro no sistema, que houvesse transferência de tecnologia e capacitação. Então, a briga é uns dizendo: "A gente precisa que todo mundo reduza emissões". E outros afirmando: "A gente concorda em reduzir emissões, mas a gente precisa de meios de implementação".
Como o Brasil negocia?
São mesas enormes, quase 200 países. O Brasil tem dois grupos negociadores. Você chega a um acordo em um pequeno grupo, e o representante desse grupo toca um assunto: "a importância de transferência de tecnologias para que se consiga fazer políticas boas para o clima", por exemplo. Daí, ele negocia isso (com os demais países).
Quem são os negociadores brasileiros?
Somos uns 40. Além do Itamaraty, temos gente do Ministério da Agricultura, Ciência e Tencnologia, Meio Ambiente, Fazenda e Minas e Energia.
Que papel tem o agronegócio nas negociações?
Não há uma negociação específica sobre agricultura. Há um grupo de trabalho conjunto que discute seu papel na mudança do clima. O foco nessas discussões é a necessidade de adaptar os sistemas agrícolas a possíveis alterações meteorológicas extremas, como os países devem criar métodos de plantar e colher que que resguardem suas lavouras de longos períodos de seca ou chuvas pronunciadas, como se adaptar. Não há pressão por metas, mas é um dos setores da economia que tem a sua participação na emissão de gases.
O fato de o Brasil vender uma imagem de agricultura sustentável muda algo na mesa de negociação?
Ajuda muito, porque coisas que funcionam no Brasil a gente usa como argumento: agricultura sustentável, formas de plantio, adaptação. Isso é usado como nossos bons exemplos, traz para a mesa, para que vejam façam igual. No conjunto, fazendo uma transição para uma agricultura de baixo carbono, é o que todos querem.
E a indústria?
A negociação não está por setores. Tem uma meta geral: não deixar a temperatura subir além de 1,5ºC. O que precisa fazer, como os países vão se alinhar a esse objetivo, o acordo de Paris dá espaço para cada um dizer como vai fazer. Há esforços em todas as áreas: a indústria de usar energias limpas. No caso do Brasil, a matriz energética é quase a metade de fontes renováveis. Isso tudo serve de exemplo. Se estamos fazendo, os outros podem fazer. Essas decisões vão ajudando o próprio setor privado a ter uma direção.
Os discursos dos presidentes influenciam na hora das negociações ou são apenas simbólicos?
Influenciam porque os líderes dão o tom do momento. O Acordo de Paris foi uma decisão dos chefes de Estado. O líder tem responsabilidade. Se esse é um problema que tem potencial de causar tanto dano, eles têm de agir. O Acordo de Paris é resultado de uma decisão política, tomada em 2015, e isso mandatou uma série de discussões que a gente faz nessas conferências.
Então, a fala do presidente Lula influencia na mesa de negociação?
Você ouviu o presidente Lula falar: "Não podemos correr o risco". Dá tempo de fazer, só tem de fazer mais rápido. É isso o que a ciência está dizendo. A alteração no sistema atmosférico está sendo mais rápida do que se previa. Então, a resposta tem de ser acelerada. Não se pode chegar a um ponto de não retorno: degelos, grandes secas. O aumento da temperatura, que associada a fenômenos naturais como El Niño, já é sentido de forma mais grave no Brasil.
O presidente Lula se surpreendeu com o fato de o Pampa ser um bioma. Como gaúcha, a senhora sabe da importância dessa região. Mas, para o mundo, em geral o Brasil é só a Amazônia...
Porque a Amazônia é a maior floresta tropical do mundo e por sua extensão. A floresta tem uma função no sistema do clima: captura carbono para fazer fotossíntese e libera partículas de água, que são os "rios voadores", que têm função no resfriamento da atmosfera. Naturalmente, porque tem esse papel no clima, é que o mundo está olhando para nós pelo manejo da Amazônica. De um auxílio ao esfriamento global, ela pode se transformar em grande emissor de carbono se perder sua função de floresta. O mundo olha para o Brasil e vê a Amazônia.
A senhora tem acompanhado as tragédias ambientais no RS?
Um dos pilares do regime do clima que é adaptação, e alguns dos municípios afetados pelas enchentes no RS não estavam mapeados como vulneráveis. Isso mostra que o país tem de investir mais em sua adaptação: mapear áreas vulneráveis, se antecipar, ter planos de contingência. Esse fundo de perdas e danos é para isso.
O Brasil pode receber recursos desse fundo?
Na maneira como saiu (o acordo), o fundo pode receber recursos de várias fontes. Os outros fundos climáticos recebem fontes apenas de países desenvolvidos. Esse pode receber de bancos, de doadores voluntários, de outros países em desenvolvimento. E pode ser usado por países em desenvolvimento, especialmente os mais vulneráveis, como as pequenas ilhas, que podem desaparecer se o mar subir. Mas o fundo não é só para esses países. O Brasil, como país em desenvolvimento, poderá acessar o fundo, sim.