Temos o hábito - e, talvez, a necessidade - de mensurar tragédias. Pelo número de mortos. Pelo tamanho dos estragos. Pelos prejuízos financeiros provocados. Pelos pontos na escala Richter, que mede terremotos, ou na Saffir-Simpson, que mede os furacões.
Erramos. Não devemos medir tragédias. Nos mais diversos desastres que meus olhos já viram como repórter, do terremoto no Haiti ao horror do Vale do Taquari desses dias, tragédia é tragédia. Para cada família que perdeu um filho, um irmão, um pai, uma mãe ou um amigo, a tragédia que se vive é a maior de todos os tempos.
Também não se mensura ditaduras - uma espécie de tragédia política.
Não se trata de colocar na balança as crueldades de Adolf Hitler, Josef Stalin, Pol Pot, o general Médici, Augusto Pinochet, Hugo Chávez ou dos atuais Nicolás Maduro, Kim Jong-un, Mohamed bin Salman, entre outros. Ditadura, seja de esquerda ou de direita, é ditadura. E são tragédias. Para um ser humano, para uma família e para uma sociedade.
Vou poupá-los, por tanto, de ratificar que o Chile lembra, nesta segunda-feira (11), "a mais cruel ditadura do Cone Sul". Até porque, na proporção com o tamanho da população, o Uruguai teve maior extermínio. Não importa. Toda região foi irmanada pelo autoritarismo entre os anos 1960, 1970 e 1980.
A era de chumbo dos chilenos começou exatamente há 50 anos, em 11 de setembro de 1973. Ironicamente, foi como o terror antes do terror que marcaria essa mesma data, em 2001 nos Estados Unidos.
Em seus 17 anos de duração, a ditadura dos hermanos do outro lado dos Andes contabilizou 1.469 mortos e desaparecidos. Foi sob Pinochet que foi subscrita, a sangue, a Operação Condor, que amalgamou as ditaduras da região para caçar, prender e matar opositores - e cujo capítulo conhecido no Brasil ocorreu em Porto Alegre, com o sequestro dos militantes de esquerda Lilian Celiberti e Universindo Díaz, em 1978.
Outra ironia é que, nesse aniversário de 50 anos, a democracia chilena, de novo, apresenta fragilidades. O país viveu o "estallido social", uma revolta que explodiu no final de 2019, quando o mundo ainda pouco concedida atenção à covid-19. Milhares de pessoas foram às ruas, contra tudo e contra todos (e principalmente contra a desigualdade), para exigir maior acesso à educação e à saúde - dois direitos que são privatizados no Chile.
O resultado do "estallido" foi a promessa de uma nova Constituição - a atual ainda é do tempo de Pinochet - e essa deveria ser escrita por uma comissão eleita pelo povo. Passados quatro anos, os chilenos ainda não têm sua nova Carta Magna. A Assembleia Constituinte foi eleita, o rascunho foi redigido, mas, antes de ser promulgada a Lei, a população rejeitou o documento em referendo.
Voltou-se à estaca zero. Ou quase. O presidente agora não é mais Sebastián Piñera (direita tradicional), que colocou os carabineiros nas ruas contra os manifestantes, em 2019, mas Gabriel Boric (esquerda), filho da revolução de 2019.
Uma nova comissão foi eleita - e, nessa o Partido Republicano, do líder José Antonio Kast (de direita radical), conquistou 22 das 50 cadeiras. Tudo indica que o país, se conseguir der o passo seguinte à Constituição de Pinochet, ainda assim não terá uma Carta Magna que garanta plenos direitos civis e políticos e manterá sistemas privatizados de aposentadoria e saúde.
Kast, que concorreu com Boric e perdeu o Palácio de La Moneda, representa hoje no Chile o militarismo, o nacionalismo e o revisionismo. Seu partido nutre-se do desencanto, da ineficiência da esquerda, da desgraça econômica da pandemia, da explosão da migração venezuelana e peruana e da piora dos índices de violência.
Irmanados nas ditaduras, Chile (1973-1990), Brasil (1964-1985), Uruguai (1973-1985), Argentina (1973-1983) e Paraguai (1954-1989), agora convivem também com a polarização, a descrença na política partidária, a desintegração da direita tradicional e a ineficiência da esquerda.
O 11 de Setembro nunca foi tão atual.