Em dois momentos nos últimos três dias, o presidente Lula postulou que o agronegócio tem um "problema ideológico" com seu governo. Disse isso nesta quinta-feira (15), em entrevista a rádios de Goiás, repetindo algo semelhante que afirmara na live de terca-feira (13).
Poucas vezes se falou tanto em ideologia. Por isso, não custa voltar aos clássicos: a partir da definição do conde Destutt de Tracy, em Fundamentos da Ideologia (1801-1815), ideologia é a ciência que estuda as ideias. Essa interpretação, claro, pouco ajuda a compreendermos seu sentido contemporâneo. Mas foi uma das primeiras vezes em que o termo apareceu para ser, logo depois, questionado pelo marxismo. Para Karl Marx, ideologia seria uma consciência sistematizada da realidade social, política e econômica cujo objetivo é perpetrar a dominação do proletariado pela classe burguesa por meio do falseamento da realidade.
Complicou? Calma. Não à toa Norberto Bobbio, em seu Dicionário de Política, caracterizou o verbete da seguinte forma: “Não existe talvez nenhuma outra palavra que possa ser comparada à ideologia pela frequência com a qual é empregada e, sobretudo, pela gama de significados diferentes que lhe são atribuídos”. Sim, se fosse vivo, Bobbio certamente criaria um verbete sobre "narrativa", outra palavra desgastada no Brasil atual.
Fiquemos, assim, com o senso comum: ideologia é como um sistema de crenças políticas, valores e visões de mundo. Sendo assim, seria de se intuir que, a depender da suposta diferença "ideológica" entre Lula e o agronegócio, o diálogo entre posições divergentes nunca será possível. O que dá algum alento é que, em nosso país, as pessoas têm memória curta. Tome-se como exemplo o recente périplo do advogado Cristiano Zanin pelos gabinetes de parlamentares conservadores.
A senadora Damares Alves (Republicanos-DF) saiu nesta quinta-feira (15) de um encontro com o indicado por Lula para a vaga de Ricardo Lewandowski no Supremo Tribunal Federal (STF) chamando-o de "muito inteligente" e afirmando que "gostou dele como pessoa". Logo ela que havia prometido não aprovar o nome de Zanin de jeito nenhum - nada a faria mudar de ideia, garantiu. Pela voz de Mecias de Jesus (Republicanos-RR), outros dois senadores do partido, o gaúcho Hamilton Mourão e Cleitinho (MG) também "gostaram muito da conversa, da transparência, da forma equilibrada, e sem ideologia nenhuma" com Zanin. Olha a ideologia aparecendo aí de novo.
Nunca Bobbio foi tão atual: fala-se em desideologizar as relações econômicas, a máquina estatal, o Itamaraty, as Forças Armadas. Desconfie quando ouvir isso porque, provavelmente, alguém estará apenas buscando substituir um sistema de valores, crenças e visão de mundo por outro - em geral o seu.
O problema do agro com Lula não é ideológico. É econômico. O da indicação de Zanin é de violar a impessoalidade do cargo. E o da política externa e das Forças Armadas é de garantir instituições de Estado. Se houver respeito à Constituição, não há problema a imensa maioria dos militares ser anti-PT nem os ruralistas abraçarem Jair Bolsonaro. É para isso que existe a política - o diálogo possível, a arte de ceder aqui para ganhar ali, ou, em outras palavras, a busca por pontos comuns em meio a ideologias divergentes.