Quando a pandemia de covid-19 chegou ao Ocidente, uma das imagens mais marcantes do egoísmo das nações foi registrada na Europa, com governos disputando máscaras e respiradores em pistas de aeroportos.
A mesma desigualdade entre países ricos e pobres foi registrada diante das primeiras vacinas - algumas nações fizeram estoque de produtos, enquanto outras sequer tinham acesso à novidade que salvaria vidas.
Para evitar que, diante de uma nova pandemia, esse tipo de problema ocorra e para que, como humanidade, estejamos mais preparados para uma crise de saúde pública global é que a Organização Mundial da Saúde (OMS) está reunida nesta semana em Genebra, na Suíça. Paralelamente ao encontro, ocorre o Intergovernmental Negotiating Body (INB), um órgão intergovernamental negociador que está empenhado, neste momento, em debater protocolos que reduzam essa desigualdade diante de uma crise.
Entre os participantes dos debates está o gaúcho Francisco Viegas, assessor de política e inovação em saúde da campanha de acesso a medicamentos da organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF). Nascido em Tenente Portela, o advogado, que mora em Pelotas, foi enviado à cidade europeia para negociar, em nome da entidade, protocolos que garantam maior equidade na distribuição de tecnologias, equipamentos de proteção individual, insumo, vacinas e medicamentos no caso de novas tragédias humanitárias. De Genebra, ele contou à coluna como estão nas negociações.
Nesta semana, circulou um texto que será a base para a próxima negociação, mas vocês são críticos dessa proposta. Por quê?
Pelo nosso olhar, esse texto ainda está longe de conter os objetivos de garantir maior equidade, acesso a medicamentos, vacina e tratamentos de forma equitativa, para que não ocorra o que a gente já viu em outras crises humanitárias, em que esses recursos chegavam primeiro aos países do Norte, e, depois, nos países do Sul Global, com maior morosidade.
Esse texto avança em relação ao que se tem hoje?
Essa é uma das grandes críticas e por isso que se precisa de um instrumento sobre pandemias. Não existia um marco de como os países devem lidar com esse assunto. Existe simplesmente o atual regulamento sanitário internacional, que tem mais a ver com aspecto de vigilância e tipificação de uma doença nova circulante com potencial pandêmico, mas que não entra nos aspecto de como enfrentar questões de inequidade de quem financia pesquisa e desenvolvimento de um novo medicamento. A Convenção do Tabaco é o único marco internacional vinculante no âmbito da OMS que trouxe compromissos sólidos. O que se busca com esse acordo de pandemias é ter um acordo também vinculante, para que não fique baseado no voluntarismo, em doações, na boa vontade de países ou de indústrias. Estamos tentando nos espelhar na Convenção Quadro para o Controle do Tabaco, que provocou restrições para se fumar em lugares fechados, diminuição da propaganda e vários outros elementos. A ideia é que se possa ampliar, a partir desse exemplo, para um acordo vinculante com compromissos que os países devam assumir.
Que normas vinculantes garantiriam acesso mais equitativo a medicamentos e vacinas no caso de uma nova pandemia?
Trata-se de garantir que, quando se tiver um medicamento ou uma vacina, que não fique apenas um produtor produzindo. Também que se tenha maior distribuição geográfica. E, com isso, que gere uma demanda concreta massiva que seja capaz de atender à demanda mundial. Que nenhum país fique em segundo lugar na fila. No caso de uma pandemia, como a gente viu na covid-19, se as pessoas não estão protegidas, novas variantes podem surgir. Os países têm maior poder, que eles, infelizmente, não exercem. Em boa parte da pesquisa e da inovação para medicamentos novos, houve financiamento público muito significativo. No caso da vacina da Moderna, por exemplo, ela foi praticamente toda financiada com dinheiro dos EUA. A vacina que a gente chama de AstraZeneca foi desenvolvida pela Universidade de Oxford com recurso público do Reino Unido. Em função desse recurso público que foi proporcionado, os países deveriam exigir preços mais justos e transferência de tecnologia dessa produção. Os países têm essa prerrogativa e deveriam exercê-la como quem financiou esse desenvolvimento, assim como devem exigir maior transparência (por parte das indústrias). A gente está exigindo também que, em um momento de pandemia, não se tenha proteção de patentes, que sejam suspensos esses direitos. Se em um momento como esse a gente não priorizar a vida das pessoas, não estaremos apenas falhando como humanidade, mas também em proporcionar acesso a tratamentos que já foram descobertos.
Nossa preocupação é de que não tenhamos aprendido nada com a crise humanitária que tivemos, com uma perda absurda de vidas.
A OMS parece ser o órgão mais apropriado para orquestrar essa união de forças. Mas, ao mesmo tempo, ela saiu enfraquecida da pandemia, não?
Não sei se a OMS saiu enfraquecida. Minha percepção é de que a OMS, enquanto uma organização de Estados membros, é tão forte quanto os países permitem que ela seja ou tão fraca quanto eles também permitirem que seja. No caso da covid-19, houve algumas tentativas para que houvesse compartilhamentos de tecnologias, inclusive para a OMS, para replicação de vacinas e outros produtos. Poquíssimos parceiros apresentaram essas tecnologias para que fossem disponibilizadas. Houve interesse dos grandes laboratórios de manter o monopólio, e os países exerceram pouca pressão para garantir que essas pesquisas financiadas com recursos públicos fossem transferidas para OMS. Houve esforços, só que a gente viu que o voluntarismo, a boa fé política, não vigorou. O que vigorou foi esse nacionalismo de vacinas, de comprar estoques, para garantir suas necessidades individuais. Não houve um pensamento coletivo. Enquanto o mundo inteiro não estiver seguro, ninguém estará seguro. A OMS é o melhor espaço, porque permite que as forças entre Norte e Sul, em ambiente multilateral, possam entrar em uma deliberação com uma confluência de forças um pouco mais igual. Se houver um marco jurídico internacional já pensando na equidade, coloca-se essa situação em um patamar diferente. É necessário ter um acordo, mas com compromissos que mudem o status quo. O que está proposto no momento no texto, sinceramente, não provoca o impacto concreto e real. Se ocorrer amanhã uma próxima pandemia, nada do que está posto ali produziria um impacto concreto de aumentar tecnologia, conhecimento, know how, coisas que são importantes. Há falta de transparência nos acordos, preços abusivos, países do Sul Global pagando mais caro do que as nações do Norte... Infelizmente, isso foi normalizado como sociedade. Nossa preocupação é de que não tenhamos aprendido nada com a crise humanitária que tivemos, com uma perda absurda de vidas.
Uma imagem que marcou, antes da vacina, era a de governos disputando respiradores e máscaras em pista de aeroportos na Europa.
O mesmo se aplicava para vacina. Havia um contexto em que os fabricantes da Janssen estavam produzindo as vacinas na África do Sul e exportando para a Europa. Ou seja, o país tendo acesso muito restrito no âmbito nacional, e locais de fabricação que deveriam suprir as demandas locais estavam servindo para atender demandas do Norte.
Mas havia também os problemas de insumos, que faltavam por dependência de alguns países, como Índia e China.
Sobre a dependência de produção e conhecimento só se consegue avançar quando há esse olhar de compartilhamento de informação, de transferência de tecnologia. A gente deveria olhar problemas como uma pandemia como um bem público.
Para a MSF, da forma como está, os problemas que aconteceram no enfrentamento da pandemia no passado podem se repetir no futuro?
Certamente. Porque o acordo que existe só coloca compromissos baseados em negociações futuras. Não há poder de determinar aspectos vinculantes, o que, se pensarmos em uma emergência, não é nem racional. Se não expandirmos a capacidade de produção, não teremos como nos preparar para uma pandemia. A gente tem de expandir a capacidade de produção, o know how, a transferência de tecnologia, para podermos ter maior concorrência. Não pode haver apenas um fornecedor de vacina. Essa foi a grande crise: de todos precisarem do mesmo insumo e não haver interesse, por parte da indústria, de compartilhar tecnologia. A MSF fez uma grande campanha para que as indústrias compartilhassem tecnologia, para que se tivesse maior acesso, maior produção, e nada disso foi garantido. E no texto atual continua a mesma coisa.