Aos 58 anos e com mais de 40 de medicina, a gaúcha Denise Viuniski da Nova Cruz decidiu encarar um novo desafio: ajudar, com sua experiência em nefrologista milhares de refugiados sírios que vivem em campos do país vizinho, o Líbano.
Formada pela Universidade de Passo Fundo (UPF) e com residência no Hospital de Clínicas em Porto Alegre, doutora em educação pela Univali, Denise passou 11 meses no Oriente Médio. Em entrevista à coluna, ela descreve os desafios de atender pessoas que fugiram da guerra e vivem há mais de 10 anos em um hiato, sem poder retornar a seu país e sem o reconhecido de onde estão.
Por que a senhora decidiu entrar no projeto de Médicos Sem Fronteiras?
Tenho dito que, no peito de todo bom médico, bate um coração de MSF. Falei essa frase na entrevista (para ingressar na organização) e fico repetindo porque é verdade. Isso sempre esteve dentro de mim. Comecei na medicina muito cedo, entrei na faculdade em Passo Fundo com 16 anos. Sempre tive o desejo de fazer parte de MSF. Mas a vida passa rápido. Fiz vários projetos humanitários durante minha vida de médica. Em 2017, decidi viajar um pouco, estava já pensando em trabalhar menos. Em 2020 veio a pandemia e me cadastrei no Ministério da Saúde, fiquei muito angustiada com a situação da covid. Acabei sendo chamada para trabalhar no hospital de campanha em Roraima. E lá estavam os meninos de MSF. Fiquei super interessada, mas continuei trabalhando com covid. Vim trabalhar em Florianópolis, mas fiquei "picada pelo mosquito". Quando o editar emergencial terminou, eu me inscrevi. E foi um match perfeito, porque no Vale do Bekaa tem essas duas clínicas, uma em Hermel e a outra em Arsal, que trabalham com doenças crônicas: hipertensão, diabetes, insuficiência cardíaca e renal. Isso era bem o que eu havia feito durante toda a vida no Brasil. Foi rápido: me inscrevi em dezembro, e, em março, estava em Baalbek.
O que mais chamou a sua atenção no trabalho?
Foi uma experiência que mudou minha vida. Gosto muito da ideia de MSF ser essa organização neutra, imparcial, que atende quem realmente precisa, sem qualquer tipo de preconceito ou parcialidade. Fiquei impressionada com a situação dos refugiados sírios: muitos estão lá há 12 anos, vivendo em tendas em enormes acampamentos. Fui para ficar seis meses e fiquei 11. O atendimento de qualidade que MSF leva até eles é essencial. Eles dependem dessa ajuda humanitária. O Líbano e a Síria têm uma ligação muito grande com o Brasil. Foi muito comovente quando eles me viram como brasileira. Para eles, é uma sensação de que alguém sabe que eles estão lá e se importa com eles.
Como era o seu trabalho no dia a dia?
Esse projeto no Vale do Bekaa foi inicialmente criado para atender à crise dos refugiados de 2011 e 2012. Diferentemente de outros projetos de MSF, que são criados na emergência e, depois, conseguem chegar ao fim, lá a crise não tem perspectiva de ser resolvida. O que a gente vê são campos de refugiados próximo da fronteira entre Síria e Líbano. Esses refugiados sírios não têm permissão do governo libanês para construir nada permanente. São famílias que estão há mais de 10 anos vivendo em tendas, no limbo. São pessoas que não podem voltar a seu país, que abandonaram tudo, e não têm documentos do país onde vivem. Dependem literalmente da caridade das organizações não governamentais e das Nações Unidas para sobreviver. Há um grupo grande de pacientes diabéticos que depende de insulina diária, são muitas crianças diabéticas tipo 1. Hoje, no Líbano, a única organização não governamental que distribui insulina é MSF. Além disso, nos últimos dois anos, a organização vem atendendo cada dia mais libaneses por conta dessa crise econômica sem precedentes no país.
Imagina famílias se deslocando de um lado do país até nós para conseguir insulina para suas crianças.
Que histórias a senhora se lembra?
No dia a dia, a gente trata de pessoas que dependem desses cuidados para sobreviver. Imagina famílias se deslocando de um lado do país até nós para conseguir insulina para suas crianças. Como portadoras de doenças crônicas, elas muitas vezes necessitam de procedimentos de mais alta complexidade.
Conte uma dessas histórias.
Uma história que me marcou especialmente foi de um bebezinho de 700 gramas, que nasceu em uma das clínicas, onde há serviço de obstetrícia focado para atendimento com as enfermeiras doulas. Vi a comoção de uma enfermeira norueguesa ao ver um bebezinho nascendo com 700 gramas sem a estrutura obviamente de UTI neonatal a qual ela estava acostumada em seu país. Toda a equipe estava tentando manter o bebezinho vivo até que se conseguisse transferir para a capital, Beirute, onde ele teria uma chance. O que me comoveu foi ela dizendo, em inglês: "Esse bebê é forte! Esse bebê é forte! Vamos mantê-lo vivo aqui até conseguir a transferência". Foi muito comovente ver colegas estrangeiros de países com a melhor qualidade de medicina do mundo encarando aquela situação.
O fato de ser brasileira, acostumada a trabalhar com pouca estrutura pública, ajuda?
Eu me voluntariei para trabalhar com MSF porque acredito muito que nós, brasileiros, temos esse perfil. A gente tem um potencial muito grande de fazer parte dessa ajuda humanitária. Uma razão é porque somos brasileiros e temos esse coração empático. E outra porque somos acostumados, já vimos de tudo, e trabalhamos bem nessas circunstâncias. Muitas vezes eu disse: "Sou brasileira, deixa que eu assumo a bronca". A gente se identifica muito com a precariedade das estruturas públicas.
E a dificuldade com o idioma? Soube que a senhora precisou usar linguagem não verbal.
Depois de mais de 40 anos na medicina, pela primeira vez deparei com essa necessidade, a riqueza da comunicação não verbal. Eu estava acompanhando uma consulta ao lado de uma colega médica libanesa, e a paciente usou uma expressão em árabe, referindo-se a mim, dizendo: "Essa médica tem a gente perto do coração". O que eu estava fazendo era acompanhando a consulta com olhos e ouvidos abertos. Depois, com o passar das semanas, meses, fui atendendo com ajuda da intérprete e percebi como é importante essa comunicação entre humanos. Passa muito pela língua, mas vai muito além disso.
A gente vê mães que desejam que as crianças tenham segurança, conforto, cuidados em saúde, educação.
Como foi lidar com as crianças refugiadas?
Costumo dizer que as aves que lá gorjeiam, gorjeiam como cá. O poeta não se deu conta, mas assim como as aves gorjeiam diferente, são aves do mesmo jeito. Crianças são crianças. Isso nos comove. Chama atenção a força dessas crianças. Vi gente com muita força para resistir a essas condições. As famílias têm os mesmos desejos, a gente vê mães que desejam que as crianças tenham segurança, conforto, cuidados em saúde, educação. É muito comovente.
A senhora já se prepara para novas missões?
Eu vejo potencial, nos meus colegas médicos, para todas as etapas da vida. É sempre tempo para trabalhar em uma organização como MSF, que nos leva a exatamente onde somos mais necessários e nos dá toda a estrutura para trabalhar com qualidade. Mas vejo um perfil se desenhando: a gente pode ver a medicina humanitária como carreira. Vejo oportunidade para meus ex-alunos, ex-residentes, conhecerem essa área da medicina. Por outro lado, é uma oportunidade para gente como eu, que chega a uma etapa da vida, que ainda tem gás para dar, de resistência física e bagagem enorme para encarar situações de desafio. A medicina humanitária pode ser uma oportunidade para colegas, como eu, que ainda podem contribuir muito. Comecei a pedir uma nova oportunidade enquanto estava no Líbano. Terei dois projetos: em maio, vou para Moçambique trabalhar com doenças tropicais por seis meses, e, em novembro, irei para Guatemala, em um projeto que se preocupa em atender uma doença renal chamada nefropatia mesoamericana, que atinge homens jovens, de causa não muito bem esclarecida e que me parece uma oportunidade interessante de fazer parte.