Nascido em Paris, filho de mãe brasileira e pai argelino, Tanguy Baghdadi veio para o Rio de Janeiro com três anos. Professor de Relações Internacionais da Universidade Veiga de Almeida (UVA), o pesquisador se tornou um dos mais conhecidos podcasters no Brasil ao criar o Petit Journal, plataforma que explica os intrincados jogos da política internacional por meio de uma linguagem acessível e com algum humor.
Esse didatismo, diz Tanguy, que apresenta o podcast com o professor Daniel Sousa, deve-se a sua natural curiosidade. Tanguy é um inventerado criador de conteúdos: ele também é responsável pela plataforma Petit Cursos e ensina oratória, por meio do chamado Jogo da Comunicação. É palestrante da Casa do Saber e dá aulas de preparo para a carreira diplomática no Clipping CACD. Nesta entrevista, analisa os primeiros movimentos da política externa do governo Luiz Inácio Lula da Silva e aborda os desafios do cenário global atual.
Gostaria de começar pelo teu nome: para um professor de Relações Internacionais, não deixa de ser curioso ter o mesmo sobrenome do líder do grupo extremista Estado Islâmico. Qual a origem?
Meu nome é uma bagunça. Eu, meu pai e minha mãe, nenhum dos três nasceu no mesmo continente. Minha mãe é de uma família paraibana, mas nasceu no Rio de Janeiro, carioquíssima. Meu pai nasceu na Argélia – daí o Baghdadi. Ele foi criado na França. Ficou órfão na guerra da independência argelina e acabou sendo levado por um militar francês. Viveu todas as dificuldades de ser um migrante. Tinha cara de árabe, jeito de árabe, nome árabe, mas se tornou uma pessoa muito francesa. Estudou filosofia e pedagogia. E eu nasci na França. Minha mãe foi fazer doutorado lá... Meu nome completo é Tanguy Cunha Baghdadi – tem três continentes aí.
Você tem uma história de aulas em cursos preparatórios, por exemplo, para o Instituto Rio Branco, com uma pegada fora do padrão da academia. em suas análises, adota uma tom mais informal. Como surgiu essa linguagem, que é muito parecida com o jornalismo?
Fiz mestrado na PUC-Rio, e achava que não me encaixava naquele ambiente. Sempre gostei de estudar, de ler, sempre fui muito curioso, mas eu tinha a impressão de que, na academia, não me encaixava muito bem, porque tinha esse excesso de formalismo, uma questão de mostrar toda a bagagem que você tem para alguma coisa. Não tiro de forma alguma a importância da academia, é essencial, fundamental, tem de ser incentivada, mas eu achava que tinha outra contribuição para dar. E o que eu tinha para oferecer era: não fazer o doutorado e tentar pegar esses temas complexos que a gente aprende e estuda nas RelaçõesInternacionais (RI) e torná-los palatáveis. De certa maneira, como internacionalista, me posiciono também como comunicador. Tento ser quase um tradutor de assuntos complexos para pessoas que não entendem o que aquilo significa. A academia tem outro papel: desenvolver ideias. Eu assumi outra missão: pegar uma parte disso que é desenvolvido pela academia e outra que as RIs são capazes de produzir e traduzir para pessoas que não têm acesso a essa linguagem técnica. A comunicação é importante também. Sei que tem muita gente que torce o nariz para isso, o cara está aí falando, não tem a titulação que se esperaria, mas isso me dá mais liberdade. Posso ir na live do Cazé e falar palavrão ao explicar uma situação complexa como a da guerra (live em que Baghdadi comentou a invasão russa à Ucrânia no canal do Casimiro, em 2022). É uma linguagem semelhante à do jornalismo, sim. Transito entre as RIs e o jornalismo, apesar de não ter formação em Comunicação.
Hoje, os pesquisadores são mais cobrados para fazerem divulgação e saíram da torre de marfim, não é mesmo?
Sim. Não condeno o fato de debaterem entre eles. Acho que tem uma parte da discussão que se engrandece a partir do momento em que se tem pessoas muito especializadas discutindo. Só não achei, desde o início, que esse era o meu papel. Acho que tenho facilidade na hora de falar, de simplificar as ideias, acho que sou engraçado... Não sou humorista. Mas tentar trazer um pouco de humor, mostrar as ironias... Acho o mundo um lugar muito curioso, às vezes me pego meio maravilhado olhando para o mundo: que loucura é esse lugar! Acho que, quando você mostra para o pessoal, “cara, olha que loucura isso aqui”, acho que as pessoas podem entender melhor.
Você já disse que falar sobre geopolítica é como contar uma boa fofoca. Como é equilibrar didatismo sem ser superficial?
Basta não ser superficial. Não me dou ao luxo de ser superficial, e isso me exige um trabalho massacrante: estou estudando 100% do tempo. Sou uma pessoa muito curiosa, me dói muito não saber alguma coisa. Eu me considero na maior parte das vezes um grande ignorante. Mas não me conformo com isso. Como eu me considerava ignorante 10 minutos antes de pesquisar alguma coisa, eu tento de uma certa maneira mostrar para as pessoas o caminho que eu mesmo acabei de seguir para aprender alguma coisa. As aulas que dou no Petit Cursos eu costumo dizer que são as aulas que eu gostaria de ter tido: rápidas, ágeis, de forma a apresentar um conteúdo sem um tom esnobe, de forma que o cara consiga entender aquilo e que de fato o interesse. Mas como fazer com que isso não seja superficial? Criando uma série de camadas de compreensão. É possível simplificar e, ao mesmo tempo, se eu precisar aprofundar, se precisar puxar um dado lá do meio de alguma coisa, para explicar algo mais especificamente, buscar essa informação e fazer essa complementação. No fundo é a curiosidade que move o conhecimento. Eu raramente me conformo de ouvir falar de uma pessoa, ou algum evento, sem que aquilo fique na minha cabeça e eu não pesquise depois sobre aquilo. Me dói muito quando ouço: “E aí teve aquele acordo de 1962”. Vou atrás, porque preciso saber, afinal, que acordo é esse.
Hoje, no Brasil, temos uma polarização muitas vezes virulenta. Esse fenômeno também atinge a política internacional?
Acho que estou um pouco mais a salvo, porque na política internacional essa situação é um pouco menos grave do que na política doméstica.
Mas há Venezuela, Nicarágua, Ucrânia.
Quando faço uma crítica ao Trump, é sempre: “Lá vem esse esquerdista falar do Trump”. Se é ao Putin, se digo que é uma baboseira dizer que vai invadir a Ucrânia para desnazificar o país: “Lá vem passar pano para nazista”. Isso acontece sempre. Mas azar: tenho que dizer o que vejo. Azar se vou desagradar.
As discussões sobre os fatos internacionais no Brasil não despertam muito interesse porque a imprensa brasileira não dedica tanto espaço a isso. Ou a imprensa brasileira não dedica espaço porque a população não tem tanto interesse?
Na Globonews, sempre que a pauta é a política doméstica, a audiência é muito grande. As pessoas querem saber. Quando o tema é econômico, se mexer com a vida cotidiana das pessoas, elas querem saber também. Se for um tema econômico, que a pessoa não consegue fazer um paralelo com sua vida cotidiana, a tendência é de que ela ouça, mas aquilo não parece tão importante para ela. Acho que os temas internacionais vão bem por aí. Há uma certa percepção de que o internacionalismo é muito distante da vida cotidiana das pessoas, por isso elas não dedicam tanta atenção assim a isso. Na live do Casimiro, que fizemos logo que estourou a guerra, as pessoas estavam muito preocupadas com suas vidas pessoais: era um monte de garoto, de 18, 19 anos, que não estava entendendo o que ocorria e estava com medo de ser convocado para a guerra. O medo das pessoas era esse: o que vai ocorrer comigo, o que vai ocorrer com minha família, com as economias da minha família, com o meu futuro. Em grande medida, o que tento fazer no Petit Jornal é mostrar que os temas internacionais estão mais próximos do que a gente imagina. São temas que mexem não na primeira camada da nossa vida cotidiana, porque a primeira camada é o preço da gasolina, é quem vai ganhar a próxima eleição, mas, numa segunda ou terceira camada, os temas internacionais fazem a diferença na vida da gente. Esse é mais um motivo para tornar a linguagem, ao se tratar de temas internacionais, mais lúdica. Se for muito técnico, a pessoa se afasta ainda mais desses temas, sem se dar conta de quem fazem a diferença na sua vida.
Neste momento, nem Rússia nem Ucrânia têm condição de vencer a guerra. Se a Rússia tivesse condições de vencer a guerra, já teria feito.
Os primeiros movimentos do governo Lula indicam uma saída do isolamento em que o país estava. Qual a sua análise: o Brasil tem cacife para mediar a guerra na Ucrânia?
Não acho que tenha essa cacife. Mas a posição do Brasil no mundo pode ser relevante, sim. A gente tem muitas áreas nas quais temos síndrome de vira-latas, e o país nos dá motivos para isso. Com relação à diplomacia brasileira, no entanto, o Brasil tem um perfil diplomático muito mais destacado do que seu destino lhe garantiria. A diplomacia do país é muito competente. O Itamaraty, de fato, é uma das instituições mais importantes e tradicionais do Brasil. Isso significa que o país tende a conseguir um destaque internacional maior do que sua economia ou seu exército lhe permitiriam. O Brasil é um país que, ao longo dos últimos cem anos, conseguiu mais destaque do que lhe era esperado. Uma coisa que o governo Lula fez lá atrás, entre 2003 e 2010, foi pegar esse descompasso que existe entre a imagem real do Brasil e a diplomacia brasileira, que é muito maior do que a gente tenderia a ter como papel do mundo, e tentar extrapolar, fazer com que o Brasil de fato marque uma posição internacional muito forte. Lula tem muita autoestima. Já disse que ia tentar resolver o problema do programa nuclear do Irã no momento em que o mundo inteiro estava tentando. Chegou a se oferecer para mediar o conflito Israel-Palestina. E agora está se oferecendo para mediar a questão entre Rússia e Ucrânia. Acho que a questão é menos conseguir, porque o Brasil não tem cacife para tal, mas, ao propor, ao se colocar nessa posição, ao mostrar que tem uma diplomacia vibrante, senta na mesa e vai ser ouvido. Isso é importante. Na diplomacia, o Brasil tem condições de se posicionar de maneira mais forte do que em outras áreas. Propor participação nas mediações, estar presente, assinar, aparecer na foto, isso faz diferença, constrói algo em termos de imagem, de soft power e, no limite, de visibilidade, de divulgar a cultura do Brasil para ter mais turismo, mais investimentos, mais comércio. É uma via que o Brasil precisa explorar.
O governo Lula volta a revelar dificuldade para condenar regimes autoritários como os de Venezuela e Nicarágua. Qual a importância de a esquerda brasileira como um todo, a exemplo da chilena, se posicionar contrária a esses regimes? Ou isso é irrelevante?
Não acho irrelevante. Acho importante. E a questão da Nicarágua é mais complicada porque estamos falando sobre um conflito quase geracional dentro do PT. Os fundadores do PT viam a Revolução Sandinista como referência. Isso muito antes de Daniel Ortega dar essa guinada autoritária. Então, até hoje você tem muita gente que ainda é muito apegada àquele passado, sem se dar conta de que, sinto muito, pode ter sido bom, mas não dá mais. É hora de soltar a mão e fazer a crítica que tem de ser feita, sob o risco de parecer que todo o verniz que o Brasil teve no passado, mais moderno, de fato mais progressista, continuar preso naquela esquerda embolorada da Guerra Fria. Passou, a gente não está mais em 1982, em 1987, em 1989. A gente está em 2023. Tem coisas que não são mais toleráveis. É um erro grosseiro se manter apegado ao que acontece na Nicarágua atualmente. O que não significa ter o puritanismo de achar que o Brasil não vai se relacionar com um país autoritário. Todo país democrático se relaciona com países autoritários. Mas não significa não dizer que há um problema.
A questão da Nicarágua é mais complicada porque estamos falando sobre um conflito quase geracional dentro do PT. Os fundadores do PT viam a Revolução Sandinista como referência. Mas é hora de soltar a mão e fazer a crítica que tem de ser feita
Também é o caso do brasil com a Venezuela e, se pudermos comparar, dos Estados Unidos com a Arábia Saudita?
A Venezuela não tem jeito: é o país que tem a maior reserva de petróleo do planeta e está colado no Brasil. Vai ter de se relacionar. Mas não significa dizer: “Não tem ditadura, imagina, os direitos humanos lá estão sendo preservados”. Isso é o escárnio. Não pode acontecer. Para mim, está fora de questão.
Eis a pergunta que quem lida com assuntos internacionais mais ouve: para onde vai o conflito na Ucrânia?
Essa é a pergunta de R$ 1 milhão. Não tenho a menor ideia. Porque, neste momento, nem Rússia nem Ucrânia têm condição de vencer a guerra. Isso inclusive foi dito por um alto militar americano. Se a Rússia tivesse condições de vencer a guerra, já teria feito. Já passou por dificuldades grandes, sofre com as sanções, não tanto quanto a gente imaginou no início, o apoio da população existe, mas já não é tão absoluto quanto antes, a motivação das tropas também já não é lá essas coisas, as perdas humanas e econômicas são grandes também. E a Ucrânia também não tem condições de bancar a vitória contra um país muito mais poderoso do que ela. Faz um papel interessante de resistência, consegue algumas vezes colocar a Rússia nas cordas, mas daí a vencer a guerra não me parece algo factível. Acho que é uma guerra para durar muito. E, no tempo, as coisas mudam muito. Por isso o cenário é imprevisível. Ninguém sabe até onde pode ir. Fico lembrando de guerras muito longas que a gente viu. A Síria, por exemplo, já tem 12 anos de guerra.
Conflito de baixa intensidade?
A intensidade aumentava e diminuía. A gente fala de guerra civil porque parece uma guerra interna. Foram 15 anos de guerra. Pode se tornar uma guerra como essa.
Mas o grande conflito geopolítico é da China contra os EUA. O que você pensa sobre o conceito de Guerra Fria 2.0?
Odeio esse termo. Acho esse termo errado. Não foram poucas vezes na História em que a gente viu duas potências diputando espaço. A Guerra Fria foi um fenômeno específico, de 1947 a 1989. Você tinha um elemento ideológico muito forte. Nessa disputa entre EUA e China, a questão ideológica é muito menos importante. O que há em comum é a existência de potências com bombas nucleares que não se enfrentam diretamente. Mas a gente vai ficar contando quantas Guerras Frias aconteceram? Daqui a alguns anos vai ser a Guerra Fria 7.0? Porque essa vai ser a realidade. A não ser que tenha uma guerra nuclear, mas aí gente não vai estar mais aqui para ver. Esse confronto entre EUA e China tem uma movimentação muito interessante, o tempo todo. Nesses dias mesmo vimos os EUA vendendo armas para Taiwan, e de repente a China, jogando War, vai lá e estabelece acordo de paz entre Irã e Arábia Saudita. Isso é uma jogada de gênio, é geopolítica pura. Por que a China faz isso? Porque os EUA não têm como fazer isso. Porque não são um país asiático. Por dentro da Ásia eu chego ao Oriente Médio, um local onde a China nunca atuou. E isso envolve uma série de camadas: você vê os EUA agora cheio precauções com o TikTok. Quando imaginamos que o TikTok seria tema geopolítico? Mas é. É o 5G, Huawei, a guerra na Ucrânia e mais o TikTok. Porque você vai ter uma Rússia que vai passar por dificuldades e, quando passar, vai precisar de aliado. E quem está ali é a China, se fortalecendo nessa relação. E quando você junta os dois, China e Rússia, e olha para os dois como se fosse uma integralidade, é algo absolutamente monstruoso em termos de domínio da Eurásia. Acho que isso vai ser assunto para a gente tratar pelos próximos 20, 30 anos.
Em termos geopolíticos, como você acha que O mundo saiu pandemia: melhor ou pior?
Não aprendemos nada com a pandemia. Aprendemos o quê? Aprendemos que tem gente que é contra a vacina. Foi isso o que a gente aprendeu. Nesse ponto, sou cético. “Ah, mas a experiência histórica nos ensina alguma coisa.” Não acho que a pandemia tenha ensinado ou trazido mudanças em termos de mais cooperação. Minha resposta é taxativa: se vier uma próxima pandemia, talvez a gente tenha protocolos mais bem estabelecidos, mas, em termos de cooperação, de garantia de que os Estados vão cooperar em nome de uma imunização coletiva, não tenho a menor ilusão quanto a isso.
A história da humanidade é feita por guerras sucessivas e apenas lapsos de paz. quando estourou a guerra na Ucrânia, se falava muito da Terceira Guerra Mundial. Vamos chegar a esse momento?
Esse é outro equívoco. Se, em algum momento, a gente tiver alguma confrontação direta entre algumas das superpotências, e estou pensando em EUA, China e Rússia, não vai ser nada parecido com o que a gente viu entre 1914 e 1918 ou entre 1939 e 1945. É outro desenho, muito diferente. Tem ogivas nucleares envolvidas. Tem gente que fala que Putin é louco, irá usar ogivas nucleares. Mas não é um cara inconsequente. Quando você olha para a história política dele, ele sabe o poder que tem, mas não é um cara que pareça inclinado a jogar tudo para o alto. Acho que ninguém em posição de poder nesse cenário tem essa inclinação. De todo modo, acho que as próximas décadas serão marcadas por muita tensão. Como a gente teve em outros momentos da História. Mas isso não significa que a gente venha a ter o risco de uma Terceira Guerra Mundial, não.