A professora Anaís Medeiros Passos, do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), transformou uma extensa pesquisa de doutorado defendida no Centro Internacional de Estudos Sciences Po, em Paris, em um profundo livro que analisa operações militares contra o narcotráfico em duas grandes cidades latino-americanas, o Rio de Janeiro, no Brasil, e Tijuana, no México.
Em "Democracies at War agains Drugs - The Military Mystique in Brazil and Mexico" (Palgrave Macmillan), por enquanto apenas em inglês, a pesquisadora analisa os impactos do emprego de Forças Armadas no combate ao crime, com repercussões para as comunidades, para as políticas públicas e para a própria democracia. A seguir, trechos da entrevista concedida à coluna.
Que diferenças a senhora encontrou entre abordagens policiais civis e militares e Forças Armadas, ao analisar Brasil e México?
As Forças Armadas não têm função de segurança pública. O livro problematiza essas operações. No caso do Brasil, as polícias militar e civil têm atuações muito violentas contra os moradores de locais periféricos, onde existe o tráfico de drogas. Então, os moradores têm uma desconfiança maior em relação à polícia. Quando Exército e Marinha, em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), há uma diferença de percepção social: existe uma imagem mais positiva dos militares em geral em relação à polícia. As pessoas tendem a confiar mais nessas organizações. Em operações GLO, embora sejam Forças Armadas atuando, elas têm regras de engajamento, um conjunto de procedimentos que orientam a ação dos militares. Os militares estão mais limitados para usar a violência do que a polícia.
E no México?
Os militares mexicanos têm histórico maior em combater organizações de tráfico de drogas e existem menos regras que restrinjam o uso da força. É mais normalizado que militares desempenhem funções de polícia. Ao mesmo tempo, a polícia mexicana é mais conhecida por ser corrupta do que violenta. Na operação de que participei, não era uma polícia violenta, pelo contrário ela estava totalmente cooptada por dois cartéis de drogas. Quando exército e marinha entram em cena, têm ações mais violentas do que as polícias. Como houve a prisão de muitos líderes de cartéis, ocorreu uma fragmentação do crime, com células disputando poder entre si. Então, as operações militares foram seguidas de aumento exponencial da violência.
Como foi a experiência em Tijuana?
Tijuana é marcada por muitas desigualdades. É muito rica, tem um empresariado, mas é também uma zona de trânsito, de migração legal e ilegal, de mercado de drogas. É uma cidade de muitos contrastes. Nas praias de Tijuana, você vê o muro que separa Estados Unidos e México, vai até o mar. Também passei dois meses na Cidade do México, fazendo contatos, entrevistei muitos militares, na secretaria da Defesa Nacional e da Marinha.Alguns militares mexicanos eram mais fechados do que os brasileiros. Não é tão comum pesquisadores civis fazerem entrevistas. Entrevistei alguns coronéis, um general, um almirante. Mas foi algo difícil de ter acesso.
Uma das coisas que a senhora pontua no trabalho é sobre a "mística militar" e como ela influencia as operações?
A mística militar é um conjunto de crenças e valores da população de superioridade da organização militar em relação às civis. Essa ideia de que os militares são mais eficazes, com moral mais elevada, a solidez das instituições, supostamente menos suscetíveis à corrupção. E esse conjunto de crenças tem um enraizamento social: militares, empresários, políticos, pessoas que trabalham no governo, mesmo moradores mais pobres, quando eu perguntava o que pensam sobre o Exército e a polícia, eles enalteciam os militares. Esse imaginário se relaciona a essa auto-imagem que os militares buscam promover. Eles têm uma série de ferramentas para dar publicidade a suas ações. E esse conjunto de crenças influencia a própria tomada de decisões. Como trabalho com Ciência Política, estou interessada em por que políticos, presidente, governadores e a sociedade pedem que os militares participem dessas tarefas. A classe política faz referência a esse conjunto de crenças para justificar sua escolha: "Temos de chamar os militares porque são nossa última opção, não vão se vender ao crime organizado".
O quanto esse militarismo influencia a democracia?
Esse conjunto de crenças acaba normalizando que os militares participem de temas sociais e políticos de várias maneiras. O militarismo ampara esses processos autoritários. Quando as pessoas pedem intervenção militar, se mobiliza esse imaginário social de que as Forças Armadas moderam a política, que são "aquela instituição com a qual as pessoas podem realmente contar". Em um regime democrático, as pessoas precisam entender que o papel das Forças Armadas não é o de fazer política, é de lidar com assuntos de defesa. Esses discursos sobre os militares abrem flancos para esse salvacionismo dos militares na política. Quando fiz a pesquisa, em 2018, Jair Bolsonaro recém havia sido eleito, estávamos em um processo de retorno dos militares à política. A conjuntura atual reforçou a relevância desse discurso de salvacionismo militar.
Que conclusões a senhora chega em termos de políticas públicas contra o tráfico?
Essas operações podem até ter um efeito de redução de violência no curto prazo, de pacificação, mas são muito custosas. Os índices de violência tendem a retornar aos patamares anteriores, depois que os militares saem de campo. Usando uma expressão que os próprios militares mencionaram em entrevistas é que essas operações "enxugam gelo". Elas contêm um pouco a violência, os índices criminais, dá uma pacificada, mas não é uma política sustentável. Basicamente, estão apagando incêndio. Tem outros efeitos, como a fragmentação das células criminais, fica muito evidente no México e nas favelas do Rio de Janeiro. A política de enfrentamento das drogas precisa passar por uma política de saúde. Os esforços têm de se dirigir para questões que talvez deem menos popularidades aos políticos: de reforma dos sistemas penitenciário e judiciário e do alto índice de encarceramento. Existe um desvio da função dos militares, que pode gerar problemas para as democracias, como o fortalecimento das imagens de salvadores. Uma hora apagam o incêndio da segurança pública, outra hora na política. Isso é desvio de função. Não acho que militares têm de fazer essas funções. Tanto na cidade de Tijuana quando no Rio, os altos índices de violência voltaram. Há ganhos políticos para governadores, mas há custos para as populações, com mortes e altos índices de tortura, por exemplo.