A Ucrânia deixará de existir nesta sexta-feira (30). Ao menos, a Ucrânia tal qual a conhecemos, um país com 603 mil quilômetros quadrados - já excluindo-se aqui a península da Crimeia, roubada pela Rússia em 2014.
Um ciclo irá se encerrar: não será o fim honroso nem o último ato da guerra. Para a Rússia, será o momento da anexação de quatro regiões da Ucrânia: Donetsk e Luhansk, as províncias separatistas que deram ao Kremlin o argumento para a invasão, e Zaporizhia e Kherson.
Cerca de 15% do território do país invadido passará às mãos de Vladimir Putin. Assim, em pouco mais de sete meses de conflito.
Aliás, a festa governista em Moscou está praticamente pronta. Telões foram posicionados na Praça Vermelha, na qual Putin, após assinar os documentos em que declarará a anexação, irá, provavelmente, discursar com tom vitorioso.
Para a Ucrânia e para o resto do mundo será algo grave. Triste. Revoltante. O Estado ucraniano, que declarou independência após o fim da antiga União Soviética, deixará de existir com suas fronteiras de direito após31 anos. Sobrarão 85% de seu território atual, basicamente as regiões central e oeste do país.
O mais inquietante talvez seja o fato de que a história se repete - no caso ucraniano, como tragédia e como farsa ao mesmo tempo. Putin está repetindo o modus operandi de 2014, quando realizou um falso referendo na Crimeia para dar um verniz de lisura e "vontade popular" para anexar a península. Produzirá um desastre não apenas no campo de batalha como também para as relações internacionais e o Direito internacional.
Tudo isso sob o olhar leniente - e, admita-se, quase impotente do Ocidente. Quem não concorda com Putin está de braços cruzados: opor-se significaria arriscar que o autocrata do Kremlin aperte o botão nuclear. Alguém faria isso?
Há, porém uma diferença. Em 2014, Putin anexou a Crimeia praticamente sem guerra. Agora, está abocanhando territórios que ainda estão em conflito - e que devem continuar. Luhansk está praticamente toda nas mãos da Rússia, mas, no caso de Donetsk, as tropas do Kremlin comandam 60% da província.
Tudo isso é uma resposta de Putin à contraofensiva ucraniana, apoiada pelo Ocidente, que colocou para correr seu exército do nordeste do país. Sem ação no campo militar e com sérios problemas logísticos, Putin resolveu mudar as regras do jogo e dobrar a aposta: atuar de forma política. Nesse campo, como se sabe, não há limites. No caso da anexação, o Ocidente pode espernear, a ONU condenar, os EUA aumentarem sanções e elevarem a retórica, mas nada será feito.
Há apenas um ponto que, talvez, provoque algum revés a Putin. Ao ir à TV e convocar 300 mil reservistas, na semana passada, o governante retirou o véu de sua chamada "operação militar especial", seu eufemismo particular, para considerar o que ocorre na Ucrânia uma guerra.
Pela primeira vez desde 24 de fevereiro, o sangue e as mortes podem chegar à sala de jantar dos russos - senão pela TV ou por outros veículos de comunicação tradicionais sob censura, alcançarão os cidadãos comuns em imagens no smartphone. A fuga nas estradas de quem não quer ir ao front reflete o medo de famílias de ter seus filhos massacrados em um conflito com o qual não se identificam. A guerra que estava apenas nos grotões da Rússia e era pouco conhecida das elites de Moscou e São Petersburgo, começa a atingir, agora, a classe média. Silenciosamente, os próprios russos podem minar a estrutura de poder de Putin.