Vinte anos depois que Jean-Marie Le Pen, o fundador do xenófobo Partido Nacional, estremeceu os pilares da democracia francesa ao chegar ao segundo turno, em 2002, sua filha, Marine Le Pen, alcançou outro feito: na eleição de domingo (24), somou o maior percentual de votos da história da legenda, hoje rebatizada como Reagrupamento Nacional, 41,46%. Isso significa que quase metade dos eleitores que foram às urnas em 24 de abril de 2022 viram a política que já negou a responsabilidade da França na deportação de judeus para campos de concentração e extermínio nazistas (rejeitando a posição oficial do Estado) e que se consagrou por discursos racistas e ultranacionalistas como uma opção aceitável para governar o país.
Na prática, a extrema-direita deixou de assustar boa parte dos franceses, se normalizou. Hoje, não só Le Pen é um sucesso para muitos eleitores como suas ideias - entre as quais a proibição do uso do véu islâmico por mulheres muçulmanas nas ruas - ocupam cada vez espaço na mídia e se tornaram mainstream.
Percebam o crescimento dos votos dos radicais: em 2002, Le Pen, o pai, perdeu no segundo turno, fazendo apenas 17,79%, contra uma vitória consagradora do conservador Jacques Chirac, que obteve 82,21%. Em 2017, Le Pen, a filha, também perdeu, mas alcançou 33,9% dos votos em segundo turno, contra 66,10% de Emmanuel Macron. Cinco anos depois, ela fez 7,56 pontos percentuais a mais do que seu desempenho anterior (41,46% a 58,54% de Macron, no total). Ou seja, nunca a extrema-direita chegou tão perto do poder quanto agora.
Jean-Marie, hoje com 93 anos, disputou cinco eleições. Marine, 53, concorreu a três. Talvez não seja ela, que é deputada da Assembleia Nacional pela região de Pas-de-Calais, a chegar ao Palácio do Eliseu em 2027 ou depois. Mas, a seguir essa lógica, tudo indica que, em algum momento, a França dos ideias democráticos, dos princípios racionalistas, da liberdade, da igualdade e da fraternidade, motor da União Europeia, terá um representante da extrema-direita no comando do país, como ocorre com Hungria e Polônia. Na Alemanha, ultranacionalistas foram barrados, mas seguem em alta na Áustria e estão na ponta nas pesquisas para a eleição legislativa de 2023, na Itália.
O voto antissistema está em alta na França: dos quatro melhores colocados no primeiro turno, apenas Macron representava a política normal: além de Le Pen, que foi para o segundo turno, estão na lista a extrema-esquerda de Jean-Luc Mélechon, que atingiu incríveis 22% dos votos, e Éric Zemour, que se posicionou ainda mais à direita do que Le Pen, somando 7% dos votos. As duas legendas tradicionais, o conservador Os Republicanos e o Partido Socialista (esquerda), que governaram a França entre 1980 e 2017, não juntaram nem 5% dos votos. A maior abstenção desde 1969 (28% dos votos) mostra que ou o eleitor não se sentiu representado pelos dois candidatos do segundo turno ou não está interessado em política. Aposto nas duas hipóteses ao mesmo tempo, somadas a uma crise da política representativa e a contestações à democracia liberal como resposta viável aos anseios mais comezinhos da população, como comida na mesa e dinheiro no bolso.
A adesão em massa à direita nacionalista é também efeito colateral de vários fenômenos dos primeiros 20 anos do século 21: o que é visto como excesso de poder supranacional da União Europeia (UE) sobre as identidades e soberanias nacionais; a crise econômica global de 2008 e as sucessivas ondas de refugiados (a partir de 2015, oriundos de conflitos em países muçulmanos e, de fevereiro para cá, da Ucrânia). Na visão racista dos radicais, esses migrantes se não cometerem atentados terroristas irão, no mínimo, disputar empregos com os nativos.
A meta de Le Pen, Viktor Orbán e companhia não é mais retirar seus países da União Europeia (UE), como diziam no passado, mas reformá-la por dentro, diminuindo o poder de Bruxelas sobre as capitais nacionais, recrudescendo fronteiras (visíveis e invisíveis), discordando de regras, barrando iniciativas de livre-circulação e reforçando soberanias.
Resta saber qual será a Europa mais capaz de enfrentar os desafios hercúleos que se agigantam no horizonte, com guerra, orgulho russo restaurado e reflexos sociais e econômicos da pandemia. Seria um continente unido, como o atual, ou fracionado, como na maior parte de sua existência?
Aposto na primeira ideia. Mas a história já mostrou que nenhum processo político é irreversível: a Primeira Guerra Mundial era a "guerra para acabar com todas as guerras", e houve a segunda; o Brexit revelou que o sonho da UE não era eterno; e o conflito na Ucrânia, que opõe EUA e Rússia, está aí para demonstrar que a Guerra Fria não terminou.