Papas conectados com os dramas de seus tempos não costumam ficar encastelados intramuros no Vaticano. João Paulo II, que teve papel fundamental na derrocada do comunismo no Leste Europeu, de onde era oriundo, inaugurou uma fase de papados influentes nas relações internacionais. O papa peregrino viajou, durante seu pontificado, a 129 países. Conservador na doutrina, por vezes desafiou barreiras entre religiões para pregar o ecumenismo, foi o primeiro Pontífice a ir ao Muro das Lamentações, encontrou-se com Fidel Castro, foi adversário ferrenho do apartheid na África do Sul, o primeiro líder mundial a descrever como genocídio o massacre dos tutsis pelos hutus em Ruanda e, já velho e cansado, foi um gigante na tentativa de evitar a guerra no Iraque.
- Que nunca o nome de Deus seja usado para justificar uma guerra - dizia à época.
Na América Latina, a atuação política se voltou contra o marxismo na Igreja Católica, com ataques à Teologia da Libertação e apoio a setores conservadores levaram a um papel controverso nas ditaduras no Cone Sul.
O papa é mais do que o pastor do rebanho católico, é um líder político. Francisco segue esse modelo de atuação no mundo dos homens. Por isso, o beijo que deu nesta quarta-feira (6) na surrada bandeira da Ucrânia, que chegou a suas mãos trazida de Bucha, é mais do que simbólico.
- As notícias recentes da guerra na Ucrânia, em vez de trazerem alívio e esperança, trouxeram novas atrocidades, como o massacre de Bucha - declarou o Pontífice ao final da audiência semanal no auditório do Vaticano. - Parem com essa guerra, que as armas fiquem em silêncio! Parem de semear a morte e a destruição.
Bucha é a cidade nos arredores de Kiev onde corpos de mais de 400 civis ficaram a céu aberto, pelas ruas e em valas comuns. Na semana passada, Francisco fez críticas diretas ao presidente russo, Vladimir Putin, pela primeira vez, referindo-se a ele como "um soberano com interesses nacionalistas".
Mas o que, além de gestos simbólicos, o Papa pode fazer para ajudar a parar essa guerra?
Ir a Kiev em guerra seria uma imagem e tanto. Mas, ainda assim, apenas simbólica. Mais prática seria envolver sua diplomacia em uma tentativa de mediação do conflito. Nesse sentido, um encontro entre Francisco e o patriarca Kirill, principal líder da Igreja Ortodoxa da Rússia, que tem validado os argumentos de Putin para a invasão, seria bem-vindo. A Igreja russa assumiu papel ativo na moldagem da ideologia que justifica a ocupação de territórios vizinhos à Rússia e dá à guerra na Ucrânia contornos de uma luta entre o bem e o mal.
- Nós vemos isso (a Ucrânia) como uma ameaça e temos o direito de usar a força para garantir que a ameaça seja erradicada - disse ele. - Entramos num conflito que tem importância não apenas física, mas metafísica. Estamos tratando da salvação da humanidade, muito mais importante do que política.
A Igreja Ortodoxa rompeu com o Vaticano há quase mil anos. Na história russa, o Kremlin e a Igreja Ortodoxa têm uma relação muito próxima. No caso de sua relação com Putin, haveria maior proximidade. Kirill, que antes de se tornar patriarca se chamava Vladimir, como o presidente, teria sido agente ativo da KGB nos tempos soviéticos. Kirill já chamou Putin de "milagre de Deus" pela forma como incentivou a reconstituição da Igreja Ortodoxa, simbolicamente e fisicamente, já que muitos templos foram destruídos por Stalin.
Uma mediação do Vaticano em um conflito não é impossível. E não seria a primeira vez. Francisco teve atuação fundamental na aproximação entre os Estados Unidos e Cuba, em 2014, quando os dois países restabeleceram as relações diplomáticas, que estavam congeladas desde 1961.