Até a guerra na Ucrânia começar, o grande vilão dos Estados Unidos era a China, potência em ascensão e vista por muitos como única capaz de desafiar a hegemonia americana no século 21. Mas então veio o conflito no Leste Europeu, e Vladimir Putin atraiu para si o papel de inimigo número 1 do Ocidente.
Na abertura dos Jogos de Inverno, no início de fevereiro, quando o cenário para a invasão da Ucrânia já estava desenhado, Putin selou, em Pequim, com aperto de mãos de Xi Jinping, um "acordo sem limites", visto por muitos, inclusive por este colunista, como uma aliança incondicional com o vizinho do Norte, capaz de alterar as estruturas do sistema internacional.
Não era bem assim. A China não abraçou completamente a aventura russa na Ucrânia. Ao contrário, apesar das simpatias com o Kremlin, tem buscado se manter afastada do conflito para garantir seus próprios interesses.
Mas qual o papel do gigante asiático nessa guerra?
Primeiro, vejamos as semelhanças com o regime russo. Ambas nações são governadas por autocratas - Putin e Xi; os dois países têm reivindicações territoriais (Crimeia no caso russo, e Taiwan, no chinês); também adotam visões antagonistas em relação ao Ocidente e defendem uma nova ordem global pós-liberal, multipolar; Putin e Xi desejam ainda recolocar seus países no tabuleiro de xadrez mundial, reocupando espaços perdidos como grandes potências.
Mais do que tudo isso, China e Rússia mantêm intensas trocas comerciais. A China exporta máquinas e eletroeletrônicos para a Rússia, que vende minério e imensas quantidades de petróleo para o vizinho.
Ao mesmo tempo, a China tem seus próprios interesses - e, embora o acordo sino-russo selado na Olimpíada sinalizasse uma adesão incondicional, pragmático que é, o regime comunista passou, em um segundo momento, a pensar em si próprio. No minuto seguinte à invasão, já pedia moderação e uma saída pacífica para a crise.
É óbvio que o conflito entre Rússia e Ocidente desvia a atenção dos Estados Unidos, afastando por um tempo a China de sua mira como rival estratégico. Mas, mais do que isso, Pequim olha para a Ucrânia como laboratório do que pode vir a ocorrer com Taiwan, a ilha que a China entende como província rebelde (e que parte do Ocidente reconhece como independente). Trata-se de um equilíbrio complicado. Ao mesmo tempo em que a China vê na Ucrânia interferência externa de potências e violação de soberania, tema caro para Pequim, também evita criticar demais a Rússia porque, algum dia, pretende fazer o mesmo com Taiwan (apoiada pelos EUA).
Em resumo: Taiwan pode ser a futura Ucrânia.
Há também aspectos econômicos. Mais uma vez, o pragmatismo chinês entra em campo: o país quer negociar com todos, com russos, com ucranianos e com os demais europeus e com os Estados Unidos. Não quer inimigos, muito menos se tornar alvo, por tabela, das sanções econômicas impostas à Rússia. Boa parte da infraestrutura de seu megaprojeto One Belt One Road (Nova Rota da Seda) passa por território asiático e europeu - inclusive por alguns países que outrora integravam a área de influência da antiga URSS.
Uma Rússia isolada do mundo também será dependente da China ainda mais.
Assim, Pequim puxou o freio de mão em seu apoio à Rússia. E recorreu ao princípio confuciano da paciência. Até porque, como se sabe, os chineses não pensam geopolítica a curto ou médio prazo. Quando a guerra virar mais um capítulo sombrio da humanidade nos livros de História, a China poderá colher os louros de emergir em uma nova ordem global pós-ocidental, deixando para trás duas potências fragilizadas, Estados Unidos e Rússia.