É com decepção que o catarinense Alexandre Danielli, 38 anos, observou a tomada do poder pelo Talibã no Afeganistão. O sentimento deve-se ao envolvimento direto que o brasileiro teve com a guerra no país asiático. Entre 2010 e 2011, ele passou oito meses no Afeganistão, lutando como fuzileiro naval americano. Durante esse período, ele foi ferido ao ser arremessado do alto do blindado em que estava, na explosão de uma mina. Perdeu 50% da audição do ouvido direito e teve fraturas nas costelas e no pé.
O catarinense, que brinca ser natural de Joaçaba e de Herval d'Oeste, para não desagradar os familiares nas duas cidades do oeste catarinense, mora nos EUA desde 2003. Em 2007, ele alistou-se como fuzileiro naval como forma de agradecimento ao país que o recebeu e ao ver uma oportunidade de recolocação no mercado de trabalho. Antes de atuar no Afeganistão, Danielli esteve também como combatente no Iraque, em 2009. Nessa entrevista, a partir de Portland, onde vive, ele fala sobre a frustração ao ver o colapso das forças armadas afegãs, que ajudou a treinar, diante do avanço da milícia fundamentalista.
Colaboração: Humberto Trezzi
Como o senhor, que lutou no Afeganistão e sentiu na pele o esforço para pacificar o país, vê a retomada do poder pelo Talibã?
Primeiro, não é uma surpresa. Qualquer militar que conviveu com a população sabe que o povo falava que, assim que a gente saísse de lá, eles (os talibãs) voltariam. A gente falava: "Não, porque a gente está treinando o exército afegão, a polícia, a gente está aqui para ajudar vocês". Mas eles falavam: "A hora que vocês forem embora, os talibãs vão voltar". A gente meio que não acreditava. E o medo, na alma e no coração deles, era muito grande. Sabe o medo do bicho-papão? O medo do carioca e do paulista do PCC? É o mesmo que o povo fraco, frágil e pobre do Afeganistão sentia em relação ao Talibã. A minha frustração é que a gente treinou muito (o exército afegão). A gente ajudou, nós os levávamos a liderar patrulhas. A cada sete fuzileiros navais, levávamos dois, três, quatro soldados afegãos. Colocávamos eles a liderarem uma missão. Dávamos empoderamento a eles, dizíamos: "Isso aqui é teu, a gente está aqui pra te ajudar". Pensei "Agora vai": trezentos mil soldados afegãos treinados, capacitados, agora vão segurar a barra. Saímos de lá e "puf", deu 11 dias. Nem lutaram.
Nós escutávamos: 'A hora que vocês forem embora, os talibãs vão voltar'. A gente meio que não acreditava. Mas o medo, na alma e no coração deles, era muito grande.
Dá uma frustração?
É, por causa do exército afegão, dos quais a gente esperava muito mais. Os generais de alto escalão americanos têm o mesmo sentimento. Como você ensina coragem a uma pessoa? Como ensina a ter autoestima? Como você tira o medo do coração e da alma de um ser humano? É muito mais profundo do que um treinamento militar.
Parecia que os soldados não tinham pelo que lutar. Ao verem o Talibã avançando, abandonaram as armas.
Pegue o bairro mais perigoso de Porto Alegre. Por que a população inteira não se une e vai lá revolver o problema? Tem gente que talvez tenha medo de andar nesses locais.
A sensação é de esforço jogado fora?
Não, inclusive acho que foi uma experiência boa para todos. É um erro quem fala que foi a guerra dos EUA. A guerra era da Otan, eu lutei com 17 países lado a lado, entre eles Canadá, Inglaterra, França, Itália, Alemanha, Geórgia. Não foi em vão, porque a gente ganhou experiência de vida e militar. Mas a maior lição que tirei é como ensinar o ser humano a ter autoestima, coragem e como fazê-lo perder o medo na alma e no coração. Acho que essas três perguntas a gente não se fez no passado.
E no contato com exército afegão, era possível perceber que eles não tinham treinamento suficiente perante a força do Talibã?
Não, o treinamento era muito bom. Eles eram bons soldados, mas acho que o medo estava enraizado. Pelas histórias que ouvi das tribos locais, o Talibã, de 1996 a 2001, pegava cinco pessoas que pecaram e as colocava em praça pública. Então, lhes cortavam uma mão e estancavam o sangue. Todo mundo ia ao comércio via aquelas cinco pessoas sem as mãos. No outro dia, cortavam uma perna e estancavam o sangue, para que as pessoas não morressem. Ouvia-se os gritos delas nas praças. No quarto dia, as pessoas já não tinha as duas pernas e os dois braços. Paravam o sangramento para que as pessoas continuassem vivendo e gritando. Depois, eles cortavam orelhas, nariz. Imagina você crescer em um ambiente como esse, onde todo mundo que comete um erro vai sofrer dessa forma? Claro que se pendurar em um avião é muito melhor do que ficar para trás. Por isso, quando vi essas imagens do pessoal se pendurando em avião, pensei: é normal, é lógico. Quem ajudou ou ganhou ajuda da Otan com certeza vai morrer. Você escolheria morrer torturado pelo Talibã ou ter uma morte rápida pendurada no avião? Minha opinião é de que preferiria o avião.
Os EUA deveriam ter saído antes? Pesquisas mostram que a maioria dos americanos queria que as tropas retornassem ao país.
A opinião pública foi muito forte, não queria mais que o país se envolvesse na guerra. Mas o que o povo americano às vezes não entende é que poucos países têm a coragem dos EUA. Por que dos 17 países que estavam na guerra, só falam dos EUA? Os EUA estavam só em uma região do Afeganistão. Por que não falaram da Alemanha, do Canadá, da Itália? Por que não criticam a Inglaterra, a Polônia, a Geórgia? Todo mundo está jogando a culpa nos EUA sem saber que verdadeiramente eram 17 países na guerra. Por que só um dos 17 é mais falado?
Porque os EUA lideraram a coalizão e iniciaram o conflito após sofrerem os atentados em 2001.
Porque é bonito falar mal dos EUA. Mas, se você olhar a Otan, a liderança militar nem era americana. Nunca haveria hora certa de sair. Foi tentado aprovar há uns dois anos no Congresso americano um orçamento para manter duas bases militares físicas no Afeganistão, como os EUA têm no Japão, na Alemanha. O Congresso reprovou. Então, sem base, tem de retirar as tropas. Ninguém deu bola naquela época. Aí, acontece isso.
Deixar um grupo menor de militares ajudaria?
Devido a essa decepção com o exército afegão, a gente já não sabe o que teria ajudado, o que teria dado coragem para eles lutarem. Cabul é completamente diferente do resto do país. Os jornalistas que vejo indo para Cabul e fazendo matérias, penso, os caras estão por fora. É igual fazer matéria sobre o Brasil baseado em Brasília. Não tem muito a ver como o resto do país. Segundo, as comunidades tribais afegãs não se consideram cidade, Estado ou país. É impor uma geografia que eles não reconhecem. Se você à Amazônia e falar para os índios de todas as tribos que vão lutar pelo Brasil, você acha que eles vão lutar pelo país ou pela tribo deles? Eles não veem o Brasil como país. O país deles é a tribo deles. A mesma coisa ocorre no Afeganistão. As tribos, etnias, não têm essa paixão pelo Afeganistão, pela bandeira do país.
O que o senhor acha que vai ocorrer agora com o Afeganistão? Dá pra confiar que o Talibã será moderado?
É um ponto de interrogação. Eles estão com Twitter, com porta-voz, é um Talibã diferente daquele de 1996 a 2001. A gente construiu muitas escolas no Afeganistão entre 2009 e 2012. De repente, aquelas crianças de 10, 12 anos, estão agora no Talibã e são estudados. A gente levou internet para o país inteiro, de repente, estão mais informados. Mas a gente não sabe. Porque a sharia (lei islâmica) é mal interpretada por eles. Existem fanáticos até no cristianismo. Não sei o que vai ocorrer. Torço para que não sejam tão violentos. Temos de aguardar. Muitas coisas vão ocorrer nos próximos meses. O mundo vai estar de olho, e o Talibã sabe disso. Minha opinião é de que talvez mantenham Cabul como espelho bonitinho, e o resto do país vai ser violento, tempos de barbárie.