Início ou não de uma suposta "primavera cubana", os protestos do domingo (11), os maiores desde 1994 na ilha, despertam no polarizado Brasil de 2021 discussões que, apaixonadas que são, impedem por vezes de se enxergar o que realmente está em jogo interna e externamente.
Como comentei na coluna de segunda-feira (12), há as afetações em nível doméstico de um regime que tem, pela primeira vez, um "não Castro" no poder - no Executivo e como chefão do Partido Comunista, líder máximo do Politburo cubano.
Ou seja, Miguel Díaz-Canel é um governante que precisa se consolidar no comando da nação - e, para tanto tem lançado mão ainda mais pesada do que a de Raúl, robustecendo a repressão e a censura de uma autocracia que já dura 62 anos. Existem como catalisadores da revolta cubana também os efeitos da pandemia, cujos números em mortes e infectados em Cuba - relativamente pequenos se comparados a vizinhos latino-americanos - obscurecem a tragédia econômica, que aparece nas filas por remédios e comida. E, por fim - ou por começo, dependendo do ponto de vista -, há o embargo americano fortalecido pelo governo Donald Trump e que, Joe Biden, não teve tempo ou coragem para aliviar.
No aspecto externo, a reação de alguns líderes internacionais revelam como, embora os tempos tenham mudado, a URSS tenha caído há 30 anos e com ela o mundo bipolar, muitos governantes ainda estão presos à lógica mofada da Guerra Fria.
O presidente do México, Andrés Manuel Lopez Obrador, rejeitou a política "intervencionista" da situação em Cuba, posicionamento seguido pelo autocrata da Venezuela, Nicolás Maduro. Por outro lado, o presidente Jair Bolsonaro aproveitou para bater no comunismo: "Sabe o que tiveram (os cubanos) ontem? Borrachada, pancadaria e prisão", disse em rede social.
O mundo não está mais fracionado de forma binária, a Rússia de Vladimir Putin está longe de ser comunista e nem a China, no atual estágio das coisas e seu "capitalismo de Estado", pode ser classificada totalmente assim.
O que está em jogo são interesses geoestratégicos. Cuba está no centro de um debate que é muito mais de segurança e hegemonia do que ideológico.
Não à toa, no dia seguinte à posse de Díaz-Canel como novo secretário-geral do PC, em abril, o cubano recebeu uma ligação de Putin na qual os dois conversaram sobre reforçar parcerias. Na América Latina, área de influência americana, a Rússia mantém um pé em Cuba e outro na Venezuela, enquanto o Ocidente mantiver sua influência na Ucrânia - para não falarmos de outros países da antiga Cortina de Ferro.
Havana está a cem quilômetros de Miami. Assim como Kiev fica a menos de mil quilômetros de Sebastopol, principal base naval russa no Mar Negro, na Crimeia ocupada.
A manifestação do governo Putin na segunda-feira (12) seguiu a linha de Obrador e Maduro: "Inaceitável qualquer ingerência externa nos assuntos internos do Estado soberano e qualquer ação destrutiva que favoreça a desestabilização da situação na ilha".
Aqui, um aparte para chamar a atenção como é elástico o entendimento do Kremlin sobre "ingerência externa e soberania", uma vez que, sete anos atrás, coube à Rússia ocupar e agir de forma a desestabilizar o território da Ucrânia, roubando de seu território a península da Crimeia.
A crise em Cuba obriga a Casa Branca de Biden a olhar para a ilha, quando suas prioridades eram outras - a China, a retirada militar do Afeganistão e a questão nuclear com o Irã. Com América Latina, Biden, no máximo, estaria disposto a se envolver, no ano 1 de seu mandato, para amenizar as ondas migratórias da América Central. A questão cubana não só atrai, menos de um mês depois do tenso encontro com Putin em Genebra, a Rússia para perto das barbas americanas, como também ameaça provocar nova frente de refugiados, por mar.
A reação de Biden até agora destoa da de Barack Obama, do qual foi vice e cujo governo aliviou décadas de tensões com Havana por meio do alívio das sanções econômicas e de um acordo histórico que Trump se encarregou de destruir.
- Estamos com o povo cubano em seu apelo por liberdade e alívio do flagelo trágico da pandemia e das décadas de repressão e sofrimento econômico aos quais ele é submetido pelo regime autoritário de Cuba - disse, em comunicado. - O povo cubano está afirmando bravamente direitos fundamentais e universais. Esses direitos, incluindo o direito ao protesto pacífico e o direito de determinar livremente seu próprio futuro, precisam ser respeitados.
Como candidato, o democrata prometeu levantar as restrições às remessas em dólar que os cubanos que vivem nos EUA enviam a suas famílias no território - importante via de subsistência para milhares de pessoas na ilha. Não cumpriu. O que nos leva a pensar sobre mais duas questões: o peso da comunidade cubana (em geral contrária ao regime) na política americana e cada vez mais decisiva em eleições, como se viu em Estados-chave em novembro. E a contradição que seria se Biden, um defensor inveterado dos direitos humanos, levantar restrições de Trump e aliviar sanções econômicas a uma ditadura que, como de praxe, tem reprimido sua própria população.