Quando surgiram os rumores de que a Rússia utilizou contas falsas no Facebook para tentar influenciar as eleições nos Estados Unidos, em 2016, a empresa de Mark Zuckerberg formou uma equipe de elite para investigar as suspeitas e remover as páginas. Mas o mesmo rigor com que promete tratar tentativas de manipulação política em países desenvolvidos não é observado em nações pobres, sob ditadura ou com regimes corruptos.
É o que revela nesta segunda-feira (12) uma extensa reportagem do jornal britânico The Guardian, que teve acesso a documentos internos do Facebook e a relatos de uma pesquisadora de dados, Sophie Zhang, que trabalhou no departamento de "integridade" da empresa para combater comportamentos considerados tóxicos na rede.
A investigação conclui que o Facebook, ao contrário das promessas de combater discursos falsos e manipulação política por meio de contas falsas que inflacionam dados de engajamento, permite que líderes mundiais usem a plataforma para enganar o público e para atacar opositores. Os documentos mostram que a empresa lidou com mais de 30 casos de comportamento manipulador em 25 países.
O Facebook atuou de forma rápida para retirar do ar contas falsas em países como Estados Unidos, Taiwan, Coreia do Sul e Polônia, mas pouco ou nada fez quando esse tipo de tática foi registrada em nações como Afeganistão, Iraque, Mongólia e México, por exemplo.
Sophie foi demitida do Facebook em setembro do ano passado. Conforme The Guardian, no último dia de trabalho, ela publicou um memorando, descrevendo como "encontrou várias tentativas flagrantes de governos estrangeiros de violar a plataforma em grande escala para enganar seus próprios cidadão" e criticando a empresa por sua falha em lidar com os casos. "Sei que tenho sangue em minhas mãos agora", desabafou.
Com 2,8 bilhões de usuários, o Facebook desempenha um papel importante como arena pública virtual, diz a reportagem ao denunciar que seus algoritmos podem ser manipulados para distorcerem a verdade. Uma maneira de fazer isso é criando "engajamento" falso - curtidas, comentários, compartilhamentos e reações -, usando contas criadas apenas para esse fim.
Conforme a reportagem, um dos exemplos dessa manipulação foi uma campanha organizada para favorecer a popularidade do presidente de Honduras, Juan Orlando Hernández. Em agosto de 2018, Sophie descobriu evidências de que sua equipe estava diretamente envolvida na ofensiva para impulsionar o conteúdo de sua página com centenas de milhares de curtidas falsas. Um dos administradores da página oficial de Hernández também gerenciava outas páginas que foram configuradas para se parecerem com perfis de usuários. Hernández foi reeleito em 2017 em um processo eleitoral cercado por denúncias de fraude. Sua administração é marcada por suspeitas de corrupção e violações aos direitos humanos. O Facebook levou quase um ano para tirar do ar as contas falsas.
No Azerbaijão, tática semelhante foi usada, mas para atacar veículos de imprensa independentes após reportagens críticas ao governo. O país tem um regime autoritário, não há liberdade de imprensa ou eleições livres. O Facebook levou 14 meses para tomar providências contra a ação nas redes.
Esses métodos, segundo Sophie, são possíveis porque há uma lacuna nas políticas do Facebook. A empresa exige que contas de usuários sejam autênticas e os impede de ter mais de uma, mas não há regras desse tipo para páginas.
Procurado pela reportagem do The Guardian, o Facebook informou: "Perseguimos agressivamente os abusos em todo o mundo e temos equipes especializadas focadas nesse trabalho. Como resultado, eliminamos mais de cem redes de comportamento inautêntico coordenado. Cerca de metade delas eram redes domésticas que operavam em países ao redor do mundo, incluindo na América Latina, Oriente Médio, norte da África e na região Ásia-Pacífico. Combater comportamento inautêntico coordenado é a nossa prioridade. Também estamos tratando dos problemas se spam e engajamento falso. Investigamos cada problema antes de tomar medidas ou fazer reivindicações públicas sobre eles.
Além de Honduras e Azerbaijão, os documentos comprovam casos de manipulação política usando a plataforma nos seguintes países: Albânia, México, Argentina, Itália, Filipinas, Afeganistão, Coreia do Sul, Bolívia, Equador, Iraque, Tunísia, Taiwan, Paraguai, El Salvador, Índia, República Dominicana, Indonésia, Ucrânia, Polônia e Mongólia. O Brasil, onde esse tipo de tática também é comum, não é citado na reportagem do The Guardian.
Leia a reportagem do The Guardian (em inglês) aqui.