Fazia pelo menos duas décadas que, no discurso da cerimônia de posse, um presidente dos Estados Unidos não deixava de citar o terrorismo como ameaça externa à segurança do país. O fato de Joe Biden ter elegido atores internos como os principais desafios à estabilidade americana diz muito sobre a mudança no mundo nesses 20 anos de forma geral e sobre a agenda de preocupações da comunidade de inteligência dos EUA em particular.
Não que o terrorismo tenha deixado de existir e tampouco tenha esquecido a América como alvo. Embora a Al-Qaeda tenha sido neutralizada e o Estado Islâmico disponha hoje de pouca capacidade de articulação, o extremismo islâmico atua como uma ideia difusa a inspirar lobos solitários _ por vezes, mais escorregadios aos olhos das autoridades, uma vez que agem sozinho, escondem-se no anonimato da internet e dispõem de capacidades de ataque a custos baixíssimos. Mas a questão agora é outra: o terrorismo doméstico é a principal preocupação do governo americano, não ideologias importadas.
As cenas lamentáveis da invasão do Capitólio, no dia 6, ainda assombram a mente de políticos e de autoridades da área de segurança. Os primeiros pela tragédia que poderia ter sido ainda maior (cinco pessoas morreram no episódio), caso os deputados e senadores não fossem levados às pressas para um local seguro, por túneis que conduzem a outros edifícios de Washington. Os segundos porque alguma falha grave ocorreu - há semanas grupos de extrema-direita, insuflados por notícias falsas do então presidente Donald Trump e sua narrativa de fraude nas eleições, prometiam invadir Washington. Deixar de prever ou minimizar os riscos no dia em que o Congresso ratificaria o resultado as urnas guarda semelhanças com a falta de imaginação do sistema de inteligência americano no pré-11 de Setembro.
A medo ainda paira sobre a capital. Na última quarta-feira (27), o Departamento de Segurança Interna emitiu um alerta ao público sobre o risco crescente de ataques "por parte de extremistas violentos movidos pela ideologia" e pela chegada ao poder do presidente democrata. Esses comunicados são comuns - mas, de novo, o que surpreende é que tenham a ver com ameaças internas, e não com o extremismo islâmico. Sem citar locais específicos ou o tipo dos ataques em potencial, o órgão afirma que reina "um ambiente ameaçador acentuado em todos os EUA", que, acredita, irá persistir por semanas. Outra novidade é que coloca o governo Biden na mensagem ao descrever ameaças de cunho político-ideológico.
Antes da Guerra ao Terror, os EUA sempre andaram às voltas com ameaças internas: a Ku Klux Klan, grupo supremacista branco, atua há séculos no país e exibe, frequentemente, o que a América tem de pior. O maior atentado terrorista até 11 de setembro em território americano havia sido obra de um extremista doméstico: a explosão de um prédio federal em Oklahoma City, que matou 168 pessoas, em 1995. Em 2019, um atirador matou 20 pessoas em um estabelecimento da rede Walmart em El Paso, cidade no Texas onde 81% da população é de origem hispânica. O assassino, um homem branco, de 21 anos havia deixado um manifesto como evidência de que o derramamento de sangue tinha motivação racial. No mesmo ano, o FBI já havia emitido um alerta segundo o qual o terror doméstico e não o Estados Islâmico era a principal ameaça à segurança interna do país.
O modus operandi de grupos como Proud Boys, que Trump se negou a condenar durante o primeiro debate presidencial, indica que as motivações de grupos extremistas pouco mudaram: xenofobia, obsessão por armas de fogo e a ideia de superioridade branca. Há, porém, agora, o componente tecnológico. No tempo de Timothy McVeight, executado três meses antes do 11 de Setembro pelo massacre em Oklahoma City, as mensagens de ódio circulavam em fitas VHS, em panfletos mimeografados ou corriam de boca em boca em feiras de armas nos grotões americanos. A internet engatinhava. Hoje, discursos racistas proliferam em redes sociais _ e as empresas donas das plataformas fazem ainda muito pouco para bani-los. Isso quando as próprias autoridades não alimentam narrativas extremistas com chamamentos baseados em informações falsas.