O presidente Jair Bolsonaro, o chanceler Ernesto Araújo e a diplomacia brasileira em Washington devem estar preparados para negociar com um novo secretário de Estado dos Estados Unidos bem diferente do sisudo Mike Pompeo a partir de 20 de janeiro.
Antony Blinken, 58 anos, nomeado chefe da política externa do futuro governo Joe Biden é o oposto do atual, com quem Araújo estabeleceu uma relação próxima por afinidades ideológicas e posições políticas comuns, por exemplo, em como lidar com a Venezuela de Nicolás Maduro. Um dos episódios mais polêmicos dessa proximidade ocorreu em setembro, quando Pompeo visitou Boa Vista, em Roraima, próximo à fronteira. A viagem, a menos de um mês da eleição nos EUA, foi vista como palanque para governo Donald Trump fazer ameaças ao vizinho brasileiro.
Tudo deve mudar com Blinken no comando da chancelaria americana. A começar pelo estilo. Gentil, humilde e modesto, Tony, como prefere ser chamado, preza pelo diálogo para a solução de conflitos, foi forjado em um ambiente multicultural e é guitarrista nas horas vagas - aliás, é possível ouvir duas faixas da sua banda Ablinken no Spotify.
Por tudo isso, Blinken é visto por Pompeo, integrante do Tea Party, ala mais conservadora do Partido Republicano, como um típico "globalista", termo com o qual assessores de Trump - e do presidente Bolsonaro - costumam classificar adversários ideológicos em nível internacional. A expressão ficou conhecida depois da eleição de 2016, introduzida por seguidores de Steve Bannon nos EUA e por Olavo de Carvalho no Brasil, como um suposto movimento do qual fariam parte organismos internacionais, ONGs e fundações financiadas por elites progressistas para implantar uma agenda de esquerda que estaria impregnada em Hollywood, no Vale do Silício, nas universidades públicas e em Bruxelas, sede da União Europeia (UE). O objetivo: retirar soberania dos países por meio de políticas e narrativas globais.
Veja performance de Blinken e sua banda
Por essa visão, Blinken seria filho desse mundo global. Seus pais eram judeus. Quando eles se separaram, o rapaz mudou-se com a mãe para Paris, onde cresceu. Estudou na prestigiosa École Jeannine Manuel, de ensino bilíngue. Nesse período na França, viu a Guerra do Vietnã pelas lentes europeias e observou a imagem de seu país ser corroída pelo fracasso militar na Ásia. Também interessou-se sobre as histórias do padrasto, Samuel Pisar, polonês, que sobrevivera aos campos de extermínio de Majdanek, Auschwitz e Dachau.
De volta aos EUA, Blinken graduou-se em Direito em Harvard. Ingressou no Partido Democrata e trabalhou na Comissão de Relações Exteriores do Senado ao lado de Biden - em 2003, era seu assessor quando o senador apoiou a invasão ao Iraque para destronar Saddam Hussein. Tornou-se um típico funcionário do establishment de Washington. Conheceu sua mulher, Evan Ryan, em 1995, quando ela trabalhava na Casa Branca como assessora da então primeira-dama Hillary Clinton. O tio de Blinker serviu como embaixador dos EUA na Bélgica ao mesmo tempo em que o pai era representante na Hungria. Seu padrasto, depois de sobreviver ao Holocausto e reconstruir sua vida na América, foi conselheiro do presidente John F. Kennedy.
No governo Barack Obama, Blinken foi alçado ao cargo de subsecretário de Estado. Ele acredita que a diplomacia precisa ser complementada por dissuasão. E, como defensor dos direitos humanos, prevê o uso da força para proteger populações. Daí o apoio à ação de drones por Obama, a intervenção na Líbia e um certo mea culpa por entender que o governo do qual foi integrante deveria ter feito mais pela população Síria.
Nova-iorquino, agora no mais alto cargo da política externa americana, ele terá a missão de recolocar os Estados Unidos no cenário internacional, rompendo com o isolacionismo e focando no multilateralismo. O excepcionalismo americano expresso em palavras de Biden no discurso da vitória está afinado com seu pensamento. Europeísta, multilateralista e internacionalista, acredita que os laços com a Europa são vitalícios, profundos e pessoais.
- O mundo fica mais seguro para o povo americano quando temos amigos, parceiros e aliados - disse em 2016.
Ele descreve a Europa como um parceiro vital e rejeita os planos do governo Trump de retirar as tropas americanas estacionadas na Alemanha, o que, em sua visão, enfraquece a Otan e ajuda Vladimir Putin. Em todos os principais temas de política externa (mudanças climáticas, pandemia, comércio, China, Irã), seu mantra é "Os EUA devem trabalhar com seus aliados e dentro de tratados e organizações internacionais".
Em 2019, ele escreveu com Robert Kagan um texto para Brookings Institution. Sugeriu que o futuro governo enfrentará um mundo cada vez mais perigoso semelhante aos anos 1930, com "com populistas, nacionalistas e demagogos surgindo, poderes autocráticos fortalecidos e cada vez mais agressivos".
Blinken não é especialista em América Latina e o Brasil não é prioridade da agenda externa americana. Por isso, são raras as falas sobre o subcontinente. Sobre a Venezuela, ele costuma defender uma política de sanções econômicas contra Maduro e uma solução pacífica por meio de "diálogo significativo" e eleições livres.
Pelas entrelinhas, é possível perceber que o Planalto e o Itamaraty já não terão acesso livre a Washington. Cabe ao Brasil, se quiser, bater à porta.