Martín Vizcarra é o mais recente presidente latino-americano deposto por impeachment, mas não deve ser o último. Saída constitucional, porém não livre de fraturas, o julgamento político tem sido estratégia da oposição em vários países do subcontinente para se livrar rapidamente de adversários à revelia das urnas.
A curiosidade, no caso peruano, é que Vizcarra, deposto esta semana em um processo tão rápido quanto o do ex-presidente paraguaio Fernando Lugo, tinha incrível popularidade, apesar da pandemia que coloca o Peru como o país mais atingido pelo coronavírus na América do Sul em termos proporcionais e das duras medidas de restrição que esfacelaram uma das raras economias em ascensão no continente.
Mas o que houve no Peru?
A verdade é que a classe política nunca perdoou Vizcarra pelo tom autoritário de suas decisões no ano passado. O ex-vice de Pedro Pablo Kuczinski assumiu em 2018 após a renúncia do presidente, fustigado pela oposição fujimorista.
No ano passado, Vizcarra tentou levar adiante uma reforma da Suprema Corte, que no Peru é escolhida pelo parlamento. Mais uma vez, os herdeiros de Alberto Fujimori, com maioria na Casa, se opuseram. Vizcarra dissolveu o parlamento— medida que, embora seja considerada legal pela Constituição peruana, carregava o cheiro de mofo do velho autoritarismo latino-americano.
Os parlamentares reagiram, declararam a suspensão temporária do presidente. Mas Vizcarra sobreviveu. Nas eleições deste ano a população puniu a classe política tradicional. Muitas raposas se foram, e o fujimorismo teve reduzida sua participação no Congresso de 36% para 7%. Ficaram as chagas de um processo traumático.
O parlamento eleito, com políticos populistas e teocráticos, não foi muito melhor. E logo encontrou nos remanescentes do fujimorismo um aliado. Carregavam, em nova roupagem, as marcas do ranço golpista do pior período da América Latina do século 20.
Líder do Legislativo, Manuel Merino de Lama descobriu na Constituição uma cláusula de incapacidade moral para remover o presidente. Aproximou-se das forças armadas e tentou colar no presidente um escândalo envolvendo a contratação por US$ 50 mil de um cantor para dar palestras no Ministério da Cultura. Vizcarra sobreviveu. Mas Merino não desistiu. Foi descoberto, então, um suposto escândalo de suborno quando era governador de Moquegua, em 2014. Estava pronto o argumento central do impeachment.
Esta é a justificativa política para a saída de cena Vizcarra. Há outra, uma tradição que já virou de cunho místico no Peru das religiões ancestrais, quase uma maldição. Desde 2001, todos os presidentes que governaram a nação andina estão sob investigação — um deles, Alan García (1985-1990 e 2006-2011), se matou em abril do ano passado para não ser preso por lavagem de dinheiro e tráfico de influência. Alejandro Toledo (2001-2006) foi detido em julho, nos Estados Unidos, e pesa sobre ele pedido de extradição feito pela Justiça peruana. Ollanta Humala (2011-2016) foi condenado a 20 anos de prisão. Kuczynski, que assumiu em 2016 e renunciou em 2018 para escapar do impeachment em favor do vice, está sob prisão domiciliar. Vizcarra entra para a lista.
Da noite para o dia, o Peru tem novo chefe, Merino de Lama, integrante do baixo clero peruano. E a América Latina segue sua sina de destituir presidentes por meio de processos legislativos relâmpagos.