A pressão de empresários, que se mobilizam para derrubar as restrições impostas por prefeitos e governadores, e a queda de braço entre o presidente Jair Bolsonaro e dirigentes políticos regionais por causa do coronavírus não são exclusividades do Brasil.
Itália e em especial a região norte do país, comandada por governadores da xenófoba Liga, pagaram um preço alto pela briga política com o governo central, que levou, no início da crise, ao afrouxamento das restrições de circulação. Lá, movimentos de flexibilização das ordens de restrição partiram dos dirigentes locais, como a campanha "Milão não para", agora admitida como um erro.
Na Espanha, outro país devastado pelo número elevado de mortos pela pandemia na Europa, o movimento foi contrário: os governadores, em sua maioria conservadores, exigiam fechamento do comércio e restrições de acessos, enquanto o primeiro-ministro socialista Pedro Sánchez tentava segurar a pressão e garantir o prolongamento do estado de alerta, que é menos rígido do que gostaria a oposição, liderada pelo Partido Popular (PP, conservador).
Enquanto no Brasil governadores como João Doria (PSDB), de São Paulo, Wilson Witzel (PSC), do Rio de Janeiro, e Paulo César Hartung Gomes (Democratas), do Espírito Santo, discordam da ideia de isolamento vertical de Bolsonaro, nos Estados Unidos Donald Trump comprou briga com políticos locais, como os governadores Andrew Cuomo, de Nova York, e Gavin Newsom, da Califórnia, ambos do Partido Democrata.
O protagonismo de Cuomo é tanto que muitos caciques da legenda o que querem como um tardio candidato democrata à presidência, nas eleições de novembro. Diferentemente do negacionismo do presidente republicano, o político tem liderado o Estado que registra metade dos casos de todo o país com tranquilidade, explicando, de forma didática, dados científicos à população.
Na Coreia do Sul, país hoje visto como modelo de contenção ao coronavírus, o presidente Moon Jae-in entrou em confronto com a oposição no início da crise, por tentar evitar o fechamento dos acessos com a China. Veja abaixo como governos centrais e líderes regionais entraram em divergência nas estratégias de contenção da covid-19.
Mea culpa italiano
País mais devastado pelo coronavírus na Europa, a Itália aprendeu a fórceps como disputas políticas entre prefeitos e governadores e o governo central podem levar a uma inépcia administrativa, gerando ordens e decretos contraditórios, que conduzem a população a dúvidas e a nação a mortes. O epicentro da crise no país, desde o início, foi a região Norte, onde ficam Estados como a Lombardia e o Vêneto, áreas administradas por governadores da Liga, partido de extrema-direita, do popular senador Matteo Salvini, até pouco tempo atrás vice-primeiro-ministro e um dos mais conhecidos seguidores do nacionalismo populista apregoado por Steve Bannon, ex-estrategista da campanha de Donald Trump.
Em guerra com o governo central, as autoridades regionais, desde o princípio, preocuparam-se em fazer uso político da crise, buscando alavancar suas bandeiras xenófobas - reivindicando o fechamento de fronteiras, a proibição da entrada de imigrantes da África (o continente registra pouquíssimos casos de coronavírus em comparação com o resto do planeta) e quarentena a todos os estudantes que voltaram da China. Internamente, entretanto, relutavam em isolar a região do restante do país.
Quando um cordão sanitário em torno de 11 cidades da região da Lombardia foi estabelecido pelo primeiro-ministro Giuseppe Conte (sem partido), em 23 de fevereiro, Salvini e o prefeito de Milão, Giuseppe "Beppe" Sala (Liga), passaram a defender que a "vida" precisava seguir normalmente. Reivindicavam a reabertura de museus e restaurantes, sob o lema "Milano non si Ferma" ("Milão não para"). A clara contestação ao poder central vinha da região mais rica do país, responsável por um quinto do Produto Interno Bruto (PIB) italiano. Parar a Lombardia significava quebrar a já fragilizada economia. Na queda de braço, Conte venceu. O Norte não só parou como todo o país entrou em quarentena em 8 de março. A essa altura, o país já contabilizava milhares de mortos. Na quinta-feira, Sala reconheceu que a campanha foi um erro.
- Ninguém havia entendido a virulência do vírus - afirmou.
Quando a campanha foi lançada, a Itália contabilizava 12 vítimas fatais. Hoje, são 8 mil mortes - 4,4 mil só na região onde fica Milão.
Quando o jogo virou, os governadores mudaram o discurso e passaram a atacar o governo pela suposta demora na reação. Salvini passou a exigir a renúncia do primeiro-ministro "por não conseguir proteger o país" e defender a formação de um novo governo de "unidade nacional". Governadores, como o Attilio Fontana, da Lombardia, e Luca Zaia, do Vêneto, adotaram tom alarmista - e, em especial, contra imigrantes. Foi de Zaia a polêmica frase que ganhou manchetes segundo a qual os chineses eram culpados pelo vírus porque "comiam ratos vivos e outras coisas do gênero".
Nem sempre Conte foi a favor do fechamento. No início da crise, quando prefeitos começaram a fechar escolas e a proibir aglomerações públicas, o primeiro-ministro contestou as ações - algumas vezes na Justiça -, preocupado em prejudicar o turismo. Com o número de casos aumentando dentro das fronteiras italianas, o ministro das Relações Exteriores, Luigi di Maio, veio a público inclusive criticar a decisão de alguns países, como Israel e Rússia, que pediam para seus cidadãos não viajarem à Itália.
Na Espanha, governadores querem mais restrições
O limite entre paralisação parcial das atividades e o fechamento total está no centro da disputa entre o primeiro-ministro socialista da Espanha, Pedro Sánchez, e dirigentes políticos das regiões autônomas (equivalente a Estados) do país.
- Se paramos, que paremos de verdade e não pela metade - defende o presidente da comunidade autônoma da Andaluzia, Juan Manuel Moreno Bonilla (PP), durante uma videoconferência com o chefe do Executivo.
Moreno e outros políticos, como o presidente de Múrcia, Fernando López Miras (PP), tem exigido que sejam proibidas atividades "não essenciais para garantir o abastecimento e a sobrevivência". Os dirigentes têm exigido o fechamento de portos e aeroportos, com exceção para logística de abastecimento, e maior controle do estreito de Gibraltar, além de isolar regiões mais afetadas pela pandemia, como Madri. Contrariando orientações de Sánchez, López Miras ordenou o fechamento de toda atividade econômica não essencial na comunidade - o decreto não afeta transportes de mercadorias e alimentação e o funcionamento de farmácias e indústria de alimentação, além do setor energético.
- Prefiro o desgaste econômico, que ocorrerá, ao invés de perdas humanas - afirmou.
O PP tem exigido bandeiras à meio-mastro, funeral de Estado às vítimas e um monumento em homenagem aos mortos. Mas as divergências, de quem tem defendido medidas de maior restrição, não partem apenas da oposição do Partido Popular. O socialista Emiliano García Page, presidente de Castela-La Mancha, tem exigido que Sánchez imponha medidas mais drásticas durante os novos período de alerta, um dos poucos temas de consenso, fechado an quarta-feira.
- Em Castela-La Mancha, estamos mais expostos que em outras regiões à mobilidade do centro da Espanha, particularmente de Madri - disse.
Quim Torra, dirigente separatista, tem afirmado que "é necessário escolher entre a economia e a vida".
França realizou eleições, mesmo com confinamento
No sábado, 14 de março, a França passou para o estágio 3 de contaminação pelo coronavírus. Restaurantes, bares, cinemas e comércio não essencial seriam fechados por tempo indeterminado a partir da 0h de domingo, 15. Mesmo assim, oito horas depois da entrada em vigor das mais severas restrições de deslocamento, o país ia às urnas, em eleições municipais, com 47,7 milhões de pessoas aptas a ir às ruas de 35 mil cidades e vilarejos. A contradição gerou críticas de políticos como François Bayrou e presidentes de regiões, cargo equivalente ao de governadores, que exigiam o adiamento do pleito.
O presidente Emmanuel Macron comprou a briga. Manteve a disputa quando a França contabilizava àquela altura 4,5 mil casos e 91 mortos. Não seria fácil adiar o primeiro turno. Um simples decreto presidencial faria atrasar por apenas uma semana a disputa, já que a legislação eleitoral determina que o primeiro turno deve ocorrer em março. Para estender o prazo, seria preciso de consenso no parlamento. Mas em situação de emergência as barreiras legais talvez fossem superadas com mais facilidades. Havia um motivo político para Macron mante a votação, que teria abstenção de 56%, recorde mesmo em um país onde o voto é opcional: adiar o pleito seria uma demonstração de fraqueza ou soasse antidemocrático. Seis presidentes regionais - do Partido Socialista e de Os Republicanos, além do nacionalista corso Gilles Simeoni, questionaram a decisão. A República em Marcha, de Macron, respondeu que haviam sido esses partidos, especialmente os Republicanos que pressionaram o presidente a manter o pleito.
Tão logo as urnas foram fechadas, dirigentes políticos socialistas, conservadores e ecologistas principalmente, sugeriram o adiamento do segundo turno.
Os resultados são questionados, e o segundo turno, previsto inicialmente para 22 de março, foi adiado para junho. Uma das principais vozes contra a realização da eleição foi a líder do partido de extrema-direita Reagrupação Nacional (RN) Marine Le Pen.
- Um dia, terá que ser feito um balanço das decisões adotadas pelo presidente da República e sobretudo das decisões não tomadas - afirmou.
Há quem argumente que, se o segundo turno for suspenso, o primeiro também deve ser anulado.
Macron também foi atacado pela esquerda. O líder da França insubmissa, Jean-Luc Mélenchon, chega a questionar a responsabilidade penal dos funcionários do governo ao manterem o pleito.
- Devíamos ter parado tudo, foi uma farsa - afirmou Agnès Buzyn, ex-ministra da Saúde, médica, que concorria à prefeitura de Paris.
Ela, que é do próprio partido de Macron, abandonou a corrida antes do pleito, devido à crise sanitária.
Governadores enfrentam Trump nos EUA
A aprovação de uma lei bipartidária para responder ao coronavírus e o pacote de US$ 2 trilhões para reerguer a economia mostrou que democratas e republicanos podem trabalhar lado a lado. Mas as diferenças sobre medidas de contenção do vírus envolve, nos bastidores da política americana, muitas brigas. Do ponto de vista econômico, o pacote inicial proposto por Donald Trump previa US$ 3 trilhões, foi reduzido para US$ 2 tri e fechado ao fim de cinco dias de negociações. Os líderes democratas na Câmara, Nancy Pelosi, e no Senado, Chuck Schumer, divulgaram declaração conjunta na qual defendem que o presidente Donald Trump está considerando novos cortes de impostos para grandes empresas enquanto deveria priorizar a saúde e a segurança dos trabalhadores americanos. O coronavírus, que agora tem nos EUA seu epicentro, chegou ao país em momento de forte polarização e em meio à campanha eleitoral para as eleições de novembro. Exemplo desse acirramento de ânimos é que os democratas tinham seu próprio plano de estímulos à economia. Uma das grandes barreiras é o custo médico no país. Nada é gratuito, até o teste é pago. O paciente de medidas no acordo dará assistência financeira às pessoas mais diretamente afetadas e prevê testes gratuitos de coronavírus para todos, incluindo quem não tem seguro de saúde.
Durante semanas, apenas o laboratório na sede do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), agência de pesquisa em saúde pública ligada ao Departamento de Saúde, podia aplicar testes para diagnóstico da doença, os dados iniciais tinham falhas e apresentavam resultados inconclusivos, e o critério para quem podia ser testado era considerado por governadores democratas muito rígidos - somente pessoas que haviam viajado para a China ou tido contato com alguém infectado fazia o exame. Trump, que por semanas negou evidências científicas, comparou a epidemia a uma gripe comum e disse que o número de casos nos Estados Unidos estavam caindo substancialmente, encontrou no governador de Nova York, Andrew Cuomo, seu mais ferrenho opositor. Comandante do Estado que tem a metade dos casos de todo o país, ele tem sido uma espécie de João Dória para o presidente americano. Determinou, por exemplo que cada hospital de Nova York aumente sua capacidade em 50% e, diferentemente de Trump, Cuomo passa a sensação de tranquilidade no meio do caos, traduz explicações científicas com transparência e instaurou quarentena dentro das divisas do Estado, enquanto a Casa Branca titubava. E assumiu a culpa por fala de testes e pelo confinamento.
- Se alguém estiver infeliz e quer culpar alguém, pode me culpar. Não há ninguém mais responsável por essa decisão - afirmou.
A exemplo do duelo Bolsonaro-Doria no Brasil, Trump e Cuomo protagonizaram um confronto pelas redes sociais. Pelo Twitter, o presidente criticou o governador, dizendo que ele deveria fazer mais pelo Estado.
- Eu tenho que fazer mais? Não, você tem de fazer alguma coisa. Você deveria ser o presidente - rebateu Cuomo, na mesma rede social.
Trump também está sob fogo cerrado do governador da Califórnia, Gavin Newsom.
Divergências até no centralismo chinês
Mesmo na China, origem do vírus e onde se poderia supor que o regime autoritário impõe suas determinações e o assunto está encerrado o assunto, houve divergências entre o poder central, exercido pelo presidente Xi Jinping, e dirigentes da província de Hubei. A diferença é que, lá, o afastamento é sumário. Tão logo entendeu que havia erros no gerenciamento da crise, a direção do Partido Comunista Chinês baniu Jiang Chaoliang, que era secretário local da legenda e exercia o cargo semelhante ao de governador. Ele foi substituído por um homem de confiança de Xi, Ying Yong, prefeito de Xangai, quando os números mostravam a 1.355 mortos e mais de 60 mil casos no país. A pressão sobre as autoridades locais pela maneira incompetente de lidar com a gravidade da situação aumentou particularmente após a morte do médico Li Wenliang, punido pelas autoridades de Wuhan por alertar sobre novo vírus. As autoridades também foram criticadas por terem realizado um banquete público anual para 40 mil famílias poucos dias antes de a cidade ser colocada em confinamento pelo governo central. Há uma clara manobra do poder central de transformar as autoridades locais em bodes expiatórios - além do dirigente comunista, várias autoridades médicas foram afetadas em Hubei. Isso porque a população questiona o motivo de o governo de Pequim ter levado tanto tempo para informar que o vírus poderia se propagar entre humanos, questionamentos que vieram em momento em que o governo enfrentava os protestos em Hong Kong e da vitória de grupos democráticos em Taiwan, que a China considera uma província rebelde.
A disputa na Coreia do Sul
Hoje, a Coreia do Sul é vista como exemplo de contenção do coronavírus. Mas, em 13 de fevereiro, quando o país contabilizava 28 casos e passou quatro dias sem nova infecção confirmada, o presidente Moon Jae-in afirmou que o vírus "desapareceria em breve". O primeiro-ministro garantiu aos cidadãos que não havia problema em não usar máscaras cirúrgicas ao ar livre. Mas o vírus, que fica encubado no corpo de pessoas infectadas, estava se alastrando. Dias depois, havia 13 mortes e 2.022 casos.
A oposição passou a criticar Moon de ter sido lento na reação, em especial por não ter fechado as fronteiras com a China (onde o vírus nasceu) e por não ter fornecido máscaras suficientes para a população. A briga política também se dá no campo econômico: a economia do país, dependente do comércio com a China, seu principal parceiro comercial, entrou em declínio diante da desaceleração do vizinho. A oposição propagou a incompetência de Moon para a eleição de 15 de abril (que deve ser adiada) e conseguiu reunir mais de 1 milhão de assinaturas online pedindo o impeachment do presidente.
Uma das críticas mira a relutância de Moon em fechar as portas aos visitantes chineses - apenas os de Hubei foram proibidos.
- Não há benefício prático - chegou a afirmar.
Os conservadores disseram que combater o surto sem proibir os visitantes chineses era como tentar pegar mosquitos enquanto mantinha as janelas de casa abertas. Não é de hoje que os adversários o acusam de ser pró-chinês e de temer desafiar o presidente Xi Jinping.
Uma das controvérsias no país diz respeito aos membros da igreja Shincheonji, em Daegu, no sudeste da Coreia do Sul. Eles começaram a desenvolver sintomas entre 7 e 10 de dezembro, dias antes de Moon dizer que o pior já havia passado. Os fiéis continuaram a participar de cultos e disseminando o vírus. Na época, o governo de Moon garantiu que não era necessário cancelar as grandes reuniões.
Uma das vozes dissonantes foi do diretor do Centro de Controle e Prevenção de Doenças, Jung Eun-kyeong.
- Temos de permanecer vigilantes - sustentou.
O otimismo de Moon diminuiu depois que um membro da igreja deu positivo em 18 de fevereiro, tornando se o 31 paciente do país. Desde então, os casos dispararam, às vezes triplicando em um único dia.
A inicial resistência de Moon ao lidar com a crise é irônica porque ele ascendeu ao poder sustentado em parte pela forte oposição que fez ao antecessor conservador, Park Geun-hye, que sofreu com o impeachment por não saber lidar com desastres, como um naufrágio de um ferry boat e o surto de Mers (Síndrome Respiratória do Oriente Médio), considerada pelo então líder da oposição como "uma catástrofe gerada por um governo incompetente".
Com relação ao novo coronavírus, passado o momento em que bateram cabeça, as autoridades passaram a rastrear agressivamente os casos e a isolar pacientes, testando milhares de pessoas por dia.