Um dos principais responsáveis pelas negociações do acordo de livre-comércio entre Mercosul e União Europeia, anunciado este ano, o embaixador Pedro Miguel da Costa e Silva está confiante em relação ao encontro de cúpula do bloco, que ocorre na próxima semana em Bento Gonçalves, na serra gaúcha. Em entrevista à coluna, por telefone, ele confirmou a presença dos presidentes Jair Bolsonaro, de Mauricio Macri, da Argentina, e de Mário Abdo Benítez, do Paraguai. O uruguaio Tabaré Vázquez será representado pela vice, Lucía Topolansky.
Costa e Silva é secretário de negociações bilaterais e regionais nas Américas e coordenador nacional do Mercosul. Durante a conversa, o embaixador confirmou que vários acordos serão fechados durante o evento no Estado, um deles sobre proteção de indicações geográficas, como a do vinho do Vale dos Vinhedos, local da cúpula. O diplomata também explicou as declarações do chanceler Ernesto Araújo e do presidente Jair Bolsonaro que, ao longo desta semana, chegaram a afirmar que o Brasil estaria estudando a saída do bloco econômico. Leia os principais trechos da conversa.
A menos de uma semana para o encontro aqui no Rio Grande do Sul, há expetativa sobre quais dos chefes de Estado estarão presentes. O senhor pode confirmar os nomes de quem virá?
Virão o presidente da Argentina, Mauricio Macri, do Paraguai, Mário Abdo Benítez, do Uruguai (Tabaré Vázquez) não virá, mas virá a vice-presidente (Lucía Topolansky). Virão chanceleres de vários países, do Mercosul, da Guiana, do Chile, e autoridades em outros níveis de representação dos demais países.
Com relação à ausência do presidente Tabaré Vázquez é por questões de saúde?
Exatamente.
Chegou-se a cogitar que Tabaré não viria por ocasião do convite feito pelo Brasil para que a presidente interina da Bolívia participasse (O Uruguai não reconhece o governo de Jeanine Añez).
O tema não é esse. O tema é uma questão de saúde.
A presidente interina da Bolívia, Jeanine Añez, foi convidada?
Ela foi convidada, mas ainda não temos confirmação de quem virá pela Bolívia.
Durante a cúpula de Bento Gonçalves, há expectativa de que sejam discutidos detalhes do acordo de livre-comércio entre Mercosul e União Europeia. Qual o próximo passo?
Nós concluímos a etapa de negociações com os europeus no primeiro semestre do ano, ainda durante a presidência argentina. O que concluímos no segundo semestre, que é muito importante também, é outro acordo de livre-comércio com os países europeus que faltavam da Área Europeia de Livre-comércio, são países com alto poder aquisitivo, como Suíça e Noruega. Você completa todo o mercado europeu junto com o outro acordo que assinamos com os europeus. Sobre o outro acordo (com a União Europeia), estamos em uma etapa pós-negociação. Estamos fechando listas, estamos revendo os textos legais para que depois, no primeiro semestre do ano que vem, a gente possa assinar o acordo e levar para os Congressos de cada lado.
Não queremos voltar ao Mercosul de algumas épocas, das barreiras, protecionismos, das dificuldades permanentes dentro do bloco. Esse Mercosul não interessa. Queremos um Mercosul que funcione.
PEDRO MIGUEL DA COSTA E SILVA
Embaixador
E qual a sua expectativa para a cúpula?
Minha expectativa é muito positiva. É a primeira cúpula do Mercosul que a gente realiza no Rio Grande do Sul, a primeira fora de Brasília em muitos anos. A ideia do presidente de menos Brasília e mais Brasil. E tem um significado especial porque o Vale dos Vinhedos é uma indicação geográfica e vamos anunciar um acordo nessa cúpula justamente sobre proteção de indicações geográficas que têm valor comercial e cultural nos nossos países, para que sejam respeitadas nos vários países do Mercosul. Mas teremos uma série de outros acordos. Essas cúpulas terminam com reunião de presidentes, mas são precedidas de reuniões de ministros e negociações no meu nível. As negociações vão até o último dia. O pacote completo de resultados só vamos conhecer no último dia da cúpula. E é uma série de acordos que estamos negociando até o final sobre temas de fronteira, temas comerciais, facilitação de comércio, temas que terão impacto direto sobre a vida das pessoas, como defesa do consumidor, assinatura digital. É uma grande variedade de temas na agenda que a gente vai discutir lá. Não esqueça que o nome da cúpula é Cúpula do Vale dos Vinhedos.
O que pode antecipar sobre o acordo sobre proteção de indicações geográficas?
É um acordo de reconhecimento dentro do Mercosul das chamadas indicações geográficas. O Vale dos Vinhedos é uma indicação geográfica que tem um valor econômico e comercial que queremos proteger dentro do Mercosul e no mundo para que não seja usado indevidamente por um produtor que, na verdade, não é do Vale dos Vinhedos. Há outros exemplos: cacau da Bahia, café do cerrado, queijo canastra. São indicações geográficas brasileiras que a gente quer ter protegidas nos demais sócios do Mercosul. Mas esse é só um dos vários acordos que vamos anunciar lá e que estamos negociando até o último dia.
Há vários países da América Latina em crise. O risco de contágio será um tema? É uma preocupação?
Esse não é um tema que vamos discutir na reunião. Temos um fórum de concertação política, mas esse tema não estará na agenda. Evidentemente, quando você reúne presidentes e ministros de tantos países, nas conversas laterais, à margem das reuniões do Mercosul, evidentemente que os presidentes vão conversar sobre vários temas e provavelmente vão discutir o quadro regional. Mas não creio que estejamos falando em contágio. Cada país tem uma especificidade. As manifestações e acontecimentos são diferenciados. Não se pode falar em contágio nem colocar todos os temas no mesmo saco. São coisas distintas.
Ao longo desta semana, o chanceler Ernesto Araújo comentou que o Brasil estuda sair do Mercosul. Depois, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que "tudo pode acontecer". Na quarta-feira, o ministro Araújo voltou a falar no assunto, dizendo que o Mercosul pode ser um novo Sudeste Asiático. O senhor é um diplomata de carreira, trabalhou em vários países da América do Sul, o Mercosul foi durante anos um sonho de integração. O senhor acha realmente que pode acontecer de o Brasil se retirar? Isso realmente está sobre a mesa?
As declarações que você cita foram feitas em contexto. Elas precisam ser entendidas em contexto. O que tenho dito em todos os eventos dos quais participo é que nós gostaríamos que o Mercosul continuasse no caminho que trilhou esse ano. Tivemos uma convergência de visões entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Muitas coincidências. Estamos indo na mesma direção da abertura ao mundo, do aumento da integração de nossas economias, da liberalização, da desburocratização, da diminuição das barreiras, de você fazer com que o Mercosul pare de ter tantas exceções às regras. Que se volte a esse projeto que você mesmo mencionou, do Mercosul original, que privilegia abertura, integração, democracia. É isso que queremos. Esses recados que estão sendo dados, no fundo, mostram uma preocupação com que o caminho continue sendo esse. O caminho que queremos é o de continuar trabalhando juntos por essa agenda: mais acordos comerciais, avançar com Canadá, com Coreia do Sul, com Singapura, com Líbano, outros países do Sudeste Asiático, e tornar nossa região mais dinâmica. É o que queremos e o que esperamos, trabalhar com nossos parceiros do Mercosul. Agora, se por acaso esse caminho não for possível, vamos ter de ver alternativas. Não creio que nesse momento você possa falar que estamos considerando o fim do Mercosul, mas não queremos também um Mercosul que não é o Mercosul. O que se tem de entender das falas do ministro e do presidente é que queremos o verdadeiro Mercosul, o Mercosul original. Não queremos voltar ao Mercosul de algumas épocas, das barreiras, protecionismos, das dificuldades permanentes dentro do bloco. Esse Mercosul não interessa. Queremos um Mercosul que funcione.
Com relação ao futuro governo da Argentina, houve várias demonstrações públicas de divergências ideológicas. O senhor acha que é possível alguma aproximação entre o presidente eleito, Alberto Fernández, e Bolsonaro, afinal Estados estão acima de governos?
Não vou falar sobre aproximação entre os dois presidentes. No meu nível, operacional, certamente vamos ter de sentar com nossos colegas argentinos e trabalhar com eles todos os temas da agenda bilateral e da agenda Mercosul. Somos países vizinhos, vocês sabem disso melhor do que ninguém. Vamos ter de trabalhar junto com eles e espero que possamos trabalhar da melhor maneira possível, respeitando os interesses uns dos outros. Eu estava pensando em uma imagem muito simples que tem a ver com educação que a gente recebe dos nossos pais. Meus pais sempre me diziam que os meus direitos acabavam quando começavam os direitos dos outros. Desde que fique claro que o Brasil tem direitos, que a Argentina tem direitos, mas que vamos respeitar os direitos e anseios uns dos outros, é perfeitamente factível avançar.
Voltando ao acordo com a União Europeia, houve algumas polêmicas com o presidente da França, Emmanuel Macron, e com a chanceler da Alemanha, Angela Merkel. Essas divergências podem prejudicar a aprovação do tratado por parte dos parlamentos nacionais?
Sigo muito confiante e não me assusto com nada disso. Isso faz parte do jogo. Como no futebol, catimba faz parte do jogo. Declarações, dizer que não vai aprovar... Não se esqueça de que esse é um acordo transformador, que vai gerar muitos benefícios para os países dos dois lados. Vai gerar muitos benefícios para o Rio Grande do Sul, abrindo mercados, diminuindo barreiras. Mas esse acordo também tem inimigos, há setores que acham que vão ser prejudicados. E esses setores fazem pressão. Isso faz parte do jogo democrático. Não me assusto. Estou muito confiante. O trabalho terá de ser realizado lá e cá. Não esqueça de que não são só alguns países europeus que têm setores com preocupações com o acordo. Aqui no Brasil, haverá setores no próprio Congresso que irão questionar. A gente não deve se assustar com isso. É uma caminhada longa que terá de ser feita com tranquilidade, explicando o acordo. Acho que ele ainda não é bem conhecido. As pessoas falam do acordo sem terem lido, sem terem visto os benefícios. São reações epidérmicas, superficiais.
O fato de dois governos dos quatro que integram o Mercosul estarem de saída pode esvaziar a cúpula de Bento?
Não, de forma alguma. Esses são os governos dos países, estão em pleno exercício de seus mandatos. E vamos chegar ao fim da reunião com uma série de resultados. Não vejo nenhum tipo de esvaziamento. Será também uma oportunidade para despedidas, no caso do presidente Macri. No lado uruguaio, eles continuam em funções até março do ano que vem.