Gravar um documentário normalmente já costuma ser uma aventura em que se sabe como começa, mas se desconhece as agruras do caminho e muitas vezes o final é bem diferente do planejado. Devido à relação carnal com a realidade — diferentemente de um filme de ficção —, esse gênero do cinema costuma obrigar diretores, câmeras e produtores a se adaptar às surpresas impostas pelo dia a dia de entrevistados e imposições da natureza.
Imagine, então, gravar um documentário na Antártica, uma região onde o clima muda a todo instante. Esse foi o desafio da diretora Júlia Martins.
Nascida em São Paulo, mas radicada há anos entre Brasília e Rio de Janeiro, Júlia decidiu contar a história dos 15 marinheiros que passam um ano no continente gelado _ desde o incêndio da estação Comandante Ferraz até a inauguração da nova, no ano que vem, o chamado Grupo Base habita o chamado Módulo Antártico Emergencial (MAE).
Foram três viagens. Para completar o trabalho, no período mais dramático do inverno polar _ com temperatura podendo chegar abaixo de -25ºC e os ventos a mais de 100 km/h _, a diretora pediu aos próprios marinheiros que gravassem seu dia a dia.
Vencedor do prêmio de Melhor Produção no Festival Internacional de Cineastas de Nova York, Antártica Por um Ano, no valor de R$ 1 milhão, chega aos cinemas na quinta-feira. Ela conversou com a coluna.
Como nasceu a ideia de gravar na Antártica?
Surgiu depois de uma viagem à Patagônia. Estava tão deslumbrada com a paisagem. Surgiu em mim uma vontade de ir além, até a Antártica. Fui pesquisar sobre a atuação do Brasil lá e fiquei sabendo dessa experiência do Grupo Base, de manter a estação brasileira funcionando pelo período de um ano. Achei que daria uma perspectiva muito interessante. Achei interessante fazer um filme passado na Antártica, mas a partir de uma perspectiva humana, ao invés de ter a natureza como foco, como se poderia esperar.
Como pensar a produção em um lugar tão isolado, com limitações geográficas e climáticas?
O planejamento é diário, para não dizer de hora em hora, porque você nunca sabe o que vai acontecer. O tempo pode fechar, mudar de um minuto para o outro. Isso foi uma dificuldade: ter de se adaptar muito rapidamente a circunstâncias diferentes, mudar o seu planejamento de uma hora para a outra. Muito cansativo e desgastante para a equipe.
Já iniciaram as gravações na primeira viagem?
Era para ter começado a filmagem em 2012, quando procurei a Marinha. Eles embarcaram no projeto, aceitaram desde o início. Mas, uma semana antes do embarque da equipe, aconteceu o incêndio que destruiu 80% da estação antártica. A princípio, o projeto estava cancelado. Um ou dois anos depois, a Marinha retomou o contato, avisando do complexo provisório, o Módulo Antártico Emergencial (MAE) e que a gente poderia retomar o projeto. Foi aí que a gente foi atrás de financiamento. Conseguimos da Ancine (Agência Nacional do Cinema) e, finalmente, conseguimos ir para lá em novembro de 2015, finalizando o projeto em novembro de 2016.
Antes de desembarcar na Antártica vocês precisaram ficar 15 dias no Ary Rongel. Como foi?
Foi uma situação bem complicada e inesperada. A gente precisou aguardar o degelo em torno da península, além das condições de navegação no Estreito de Drake. O navio não é muito confortável. Imagina 15 dias ancorado, com limitação de água para tomar banho, para lavar roupa. O navio precisa estar em movimento para produzir água dessalinizada. Como primeira experiência, me marcou bastante. Foi difícil.
Depois começaram as gravações?
Chegando à base, era um luxo, depois de ter passado 15 dias no Ary Rongel. A gente teve pouco tempo nessa viagem. Acabamos ficando uma semana. Na segunda, a gente sequer conseguiu chegar à estação. A gente sobrevoou a estação chilena e teve de retornar. Foi muito frustrante. A partir dali, a gente passou a contar muito com a ajuda dos próprios integrantes do Grupo Base.
A presença do Brasil lá é importante para garantir às gerações futuras a participação do Brasil no Tratado Antártico e a possibilidade de integrar negociações futuras em torno da Antártica.
JÚLIA MARTINS
Diretora
A ideia de pedir aos militares para gravarem a si mesmos não estava no planejamento?
Já era intenção, mas a gente ficou muito mais dependente daquele material. Se eles não colaborassem, não haveria filme. A gente não teria como dar uma cronologia ao filme. Ainda bem que o pessoal foi ótimo, eles estavam dispostos em participar. O resultado final ficou muito legal. As imagens deles acabaram tendo um peso maior do que se esperava. As imagens deles contrastam com as nossas. A gente fez uma opção por uma filmagem muito clássica, câmera no tripé com uma janela alongada, que se diferenciou muito do material deles, com câmera na mão, qualidade menor. Esteticamente, funcionou.
A câmera sempre acaba sendo um pouco invasiva. Com os militares gravando a si próprios, com celular, eles também acabavam captando momentos de intimidade que talvez vocês não tivessem acesso.
Sem dúvida. A câmera é invasiva, às vezes deixa a pessoa que está sendo filmada na defensiva. Para fazer as entrevistas individuais, eu pedia ao fotógrafo e ao técnico de som que saíssem. Correndo o risco, porque alguma coisa poderia dar errado com o equipamento, ainda mais naquele frio. Podia parar câmera, a bateria acaba muito rápido. Mas, para conseguir ter um momento mais íntimo com eles, eu pedia que a equipe saísse. Acredito que a câmera invade, causa algum constrangimento.
Como era a rotina de gravações?
Não havia rotina justamente por causa das mudanças do tempo, que eram repentinas. Cheguei a levar um planejamento, algumas coisas que a gente gostaria de filmar, mas tudo dependia do dia a dia.
Você deu alguma orientação aos militares para as gravações? Escolheu personagens?
Não. Quando se começa um projeto desses não se tem como saber quem vai querer participar. Há pessoas que eu achava que iam filmar muito, e não filmaram nada. Outros que achei que iam ter participação pequena, mas que gostaram de ficar atrás da câmera. Eu tentava orientar de alguma forma, telefonava para eles de vez em quando para saber como estava, para saber se estavam filmando, tive de insistir um pouco. Eles estão vivendo a vida deles, é uma experiência forte na vida deles, não quer dizer que estavam pensando no documentário. Às vezes, eu precisava insistir um pouquinho para que filmassem uma coisa ou outra. É lidar com o humano, que também é inesperado.
Eles enviavam os conteúdos ou você pegou tudo da última vez?
Eu busquei na última vez. Tentei que me mandassem pela internet. Mas não era boa. Tentava fazer entrevistas pela internet, mas não conseguia. Porque era muito picotada. Quando cheguei lá, tive de ir de um em um, cada um tinha um pouco do material.
Entre as imagens dos militares, alguma imagem a surpreendeu? Abrir o HD era como uma caixinha de surpresas?
Claro. Acho que me surpreendeu a imagem deles jogando futebol no gelo, fazendo churrasco no gelo. É inusitado. O que achei surpreendente foi aquele lançamento de carga, a alegria deles ao receberem alguma coisa das famílias. São materiais muito ricos. A festa junina é uma graça. Os 15 sozinhos. Mas comemorando dentro do possível, as datas importantes.
A médica Fátima Oladejo é uma personagem que se destaca no filme.
Ela não apenas é a única mulher entre 14 homens como também foi a primeira mulher negra médica na base antártica brasileira. A doutora Fátima é nossa grande personagem. Fala muito bem, com muito humor. Tem um depoimento que acho muito bom em que ela fala sobre como se sentia sendo a única mulher. É claro que ela confiava no grupo, naqueles homens, mas, ao mesmo tempo, ela era a única mulher em meio a 14 homens longe de suas famílias, de suas esposas. Ela teve que se tornar menos vaidosa, acabou esquecendo esse lado da vaidade para se sentir à vontade.
O caso do incêndio da Estação Comandante Ferraz é um assunto que causa certo constrangimento porque se deveu a falhas de procedimento. Vocês tiveram alguma restrição nas filmagens?
Não me restringiram em nada, nem nas perguntas. Pediram para assistir ao material depois que o filme estivesse pronto, mas não colocaram nenhuma questão. Foram extremamente corretos com a gente, sem colocar empecilhos. Claro que tudo o que a gente ia fazer passava pelo chefe da estação, mas, nos momentos de entrevista, tivemos liberdade total. Eu não estava interessada em saber sobre o incêndio, não estava interessada em produzir um material mais investigativo. Eu estava com foco no tema do documentário.
Você saiu convencida da necessidade de reconstrução da estação, apesar do custo de US$ 99 milhões da obra?
Minha percepção é de que a presença do Brasil lá é importante para garantir às gerações futuras a participação do Brasil no Tratado Antártico e a possibilidade de integrar negociações futuras em torno da Antártica. Sem contar a possibilidade de participar dessa grande comunidade científica mundial. Como bem diz um pesquisador no filme, o Brasil é muito influenciado pelas mudanças climáticas que acontecem na Antártica. A Antártica é como se fosse o ar-condicionado do Hemisfério Sul.