“Seguramente, a catedral de Notre-Dame de Paris é, até hoje, uma construção majestosa e sublime, mas, mesmo permanecendo nobre durante seu envelhecimento, podemos apenas lamentar e nos indignar face às inúmeras degradações e mutilações infligidas à construção venerável, quer pela ação do tempo, quer pela mão do homem.”
A frase, que poderia ter sido escrita ontem por qualquer parisiense que olhava atônito e impotente para a Ile de la Cité, onde fica a histórica catedral consumida pelo fogo, é de 1831. Seu autor: Victor Hugo, que escreveu a mais famosa obra sobre o templo, O Corcunda de Notre-Dame. O livro, aliás, contribuiu para uma das mais profundas reformas pelas quais Notre-Dame passou. Antes, tudo era degradação.
É difícil para nós, brasileiros acostumados a ver nossos equipamentos culturais serem destruídos por incêndios – como o Museu Nacional e, antes, o Mercado Público de Porto Alegre –, imaginar que cenas como as de ontem ocorreriam na França. Mas a verdade é que desde 2017 engenheiros e arquitetos alertavam para os graves problemas estruturais da catedral mais famosa do mundo. Reportagem do The New York Times apontava que “gárgulas quebradas e balaustradas caídas foram substituídas por canos de plástico e tábuas; arcobotantes escurecidos pela poluição e corroídos pela água das chuvas; pináculos suportados por vigas presas por cordas”. Especialistas afirmavam que, embora não houvesse risco de colapso, a igreja tinha chegado a estágio crítico.
Construída nos séculos entre 1163 e 1345, Notre-Dame recebeu uma reforma profunda entre 1844 e 1864 pelas mãos dos arquitetos Jean-Baptiste-Antoine Lassus e Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc. O pináculo, a agulha central que desabou ontem em uma das cenas mais dramáticas do dia, fora refeito.
Mas, de lá para cá, ocorreram apenas obras estéticas: limpeza da fachada frontal, onde ficam as duas torres, sinos e vitrais substituídos. Quem visitava Notre-Dame pouco percebia os problemas estruturais. Havia tanto para ver lá dentro que os detalhes passavam despercebidos.
Palco da coroação de Henrique VI durante a Guerra dos Cem Anos, em 1431, e de Napoleão Bonaparte e sua mulher, Josefina, na presença do Papa Pio VII, em 1804, a igreja assistiu de um ponto de vista privilegiado de Paris a História passar lá embaixo, nas ruas da capital. Não foi poupada das mãos dos homens – em 1793, no auge da Revolução Francesa e sob o Culto da Razão, teve partes destruídas e tesouros saqueados. Em 1871, com a Comuna de Paris, tornou-se novamente pano de fundo de turbulências sociais, época em que também houve incêndios.
Notre-Dame resistiu ao nazismo que marchou pela Avenida Champs Élysées, sobreviveu às guerras internas, continentais e mundiais. Esperamos que ressurja das cinzas deste 15 de abril e que seja apenas mais um capítulo triste de seus séculos de imponência. Não há muito o que fazer a não ser, como diria Victor Hugo, lamentar e nos indignar.