Filho de mãe brasileira e pai americano, Antar Davidson de Sá, 32 anos, trabalhou entre fevereiro e junho em um dos abrigos nos quais crianças separadas de seus pais foram acomodadas depois da política de tolerância zero de Donald Trump com a migração ilegal.
Demitiu-se diante da cena de três irmãos brasileiros, que choravam ao ouvirem que seriam levados a alas diferentes do centro, administrado pela empresa Southwest Key em Tucson, no Arizona, Estados Unidos. Professor de capoeira, fora chamado pela supervisão para traduzir ao grupo (um jovem de 16 anos, uma menina de 10 e o irmão de oito), que não poderiam se abraçar.
— Diz pra eles que não podem se abraçar. Traduz isso pra eles — ordenou a superiora.
Davidson descumpriu a ordem e se demitiu.
Em entrevista à rede CNN, a diretora de comunicação do Southwest Key, Cindy Casares, defendeu a atuação dos profissionais. "O Southwest Key tem profissionais experientes e treinados para dar comodidade e orientação, e para ajudar os menores a se sentirem mais confortáveis. Abraçar é permitido".
Na quarta-feira, diante das críticas, Trump revogou a decisão de separar as famílias. Cerca de 2,3 mil crianças foram atingidas pela medida. Nesta segunda-feira, Davidson conversou com a coluna.
Qual era o perfil dos jovens que chegavam ao abrigo antes da implementação da política de tolerância zero de Trump?
Havia um perfil diferente. O fluxo migratório a partir da Guatemala já estava estabelecido. Havia muitas crianças que já sabiam o que ia acontecer, já estavam preparadas: sabiam que iam ficar nesse abrigo por um tempo e, depois, iam ser reunidas, estavam mais calmas. Nas últimas seis semanas, começaram a chegar crianças muito pequenas, que não estavam preparadas. Tinham menos de 12 anos e estavam muito traumatizadas, porque se tornaram órfãs, haviam sido separadas de seus pais. Foi muito pesado. Eles estavam utilizando modelos de prisões privadas, há certas regulações, mas eles (os administradores do abrigo) cumprem o mínimo e tiram o máximo de dinheiro de fundos públicos. O CEO desse negócio recebe um salário de US$ 1,5 milhão por ano.
Como as crianças e jovens chegavam ao abrigo?
A maioria tinha entre 14 e 17 anos. Crianças traumatizadas. Estavam gritando e chorando. A organização, como não podia contratar mais gente e já havia demitido muitos, não podia prestar um bom serviço. É uma responsabilidade muito grande, tem de ter sensibilidade, porque, nessas instalações, a maioria é direcionada para escolas públicas. Vai ser reitroduzida (na sociedade). Eles (os internos) têm de ser preparados, porque senão se tornam criminosos. Foi assim que surgiu o MS-13 (Mara Salvatrucha ou MS-13, uma gangue formada principalmente por imigrantes salvadorenhos que fugiram para os EUA à época da guerra civil, entre 1980 e 1992). Foi um erro. Eles chegaram como refugiados e aprenderam a cultura de bandido. Virou um movimento. Os EUA são um país muito grande, e sua história sempre foi construída por pessoas diferentes, chegando de outros países.
Como foi a chegada das crianças brasileiras separadas dos pais?
Dois dias antes, quando me disseram (que chegariam brasileiros), me emocionei. Pensei que seria muito legal se eu estivesse com eles para ajudar nesse processo, mostrar a eles a capoeira. O departamento médico me disse que precisavam da minha ajuda porque não falavam português. No dia que chegaram, foi muito pesado pra mim. Eu estava estacionando o carro, e uma pessoa me disse pela janela: "Graças a Deus que você chegou". Cheguei para ajudar os três irmãos. Quando um deles viu que eu falava português, começou a chorar. Aqui, usam um sistema de telefone para traduzir para o português. Ele começou a chorar e me falou: "É verdade que minha mãe está desaparecida?" Eu percebi que ele estava pensando que a mãe dele estava morta. No Brasil, quando o governo te diz que alguém desapareceu, tem significado diferente daqui. Eu tive de acalmá-los. Falei: "Tem coisas ruins aí, mas é diferente". Percebi que eles não haviam entendido o processo. Pensaram que iam sair em dois ou três dias. Estavam dizendo que iam ser separados. O irmão maior ia ter um quarto só. O irmão menor ia ficar em outro. E a menina em um terceiro quarto. Quando escutaram isso, começaram a chorar. Os dois pequenos abraçaram o irmão (mais velho) e pediam para não ser separados. Uma das minhas superiores me chamou pelo rádio e falou: "Vem cá, você tem de traduzir para esses jovens brasileiros que não podem se abraçar". Eu falei: "Pô, não sei se vou fazer isso, mas estou indo". Cheguei antes dela e vi a cena: os três chorando, se abraçando muito forte. Falei: "Você tem de ser forte nesse momento. Sei que está difícil, mas tem de ser forte, tem de ter fé". Ele me olhou e falou: "Pô, como? Como posso ser forte em uma coisa dessas? Não sei onde está minha mãe, não sei o que vai acontecer com meus irmãos. Olha aí, como eles estão." Baixei a cabeça, porque não tinha como responder. Minha superiora chegou e falou: "Diz para eles que não podem se abraçar. Traduz isso pra eles". Estava muito agressiva. Falei: "Infelizmente, como ser humano, não vou fazer isso". E aí começou o processo da minha saída. Eu vi realmente a cara da organização. Aqui, a indústria da detenção no país da liberdade está fazendo muito dinheiro.
Você se demitiu ou foi demitido?
Pedi demissão. Falei que não estava de acordo com a organização.
Como foram os dias seguintes?
No dia seguinte, chegaram mais quatro brasileiros. Depois do primeiro dia, falei para uma diretora regional, tinha de fazer algo por dentro. Cheguei para ajudar os outros quatro. Mas tornaram tudo muito difícil. Vi que eram problemas da organização. Aí, eu saí.
O que aconteceu com as crianças?
Não sei. É a pergunta de todos nos EUA. Houve a ordem executiva (de Trump), mas não se sabe como serão reunidas essas 2,3 mil crianças separadas. Estou fora (do abrigo), não tenho acesso a informações. Não fiz isso porque queria ser famoso. Fiz porque falei para esses jovens, quando estava lá dentro, que ia ajudá-los, e acho que estou ajudando.