Apesar da fama de hospitalidade do brasileiro, o país tem uma das menores taxas proporcionais de migrantes em relação à população total. Há por exemplo, cerca de 10 mil refugiados reconhecidos pelo governo em uma população de 207,7 milhões de habitantes. Nesse quesito, o Brasil perde, por exemplo, para vizinhos, como Argentina, Uruguai e Paraguai, que recebem, proporcionalmente, muito mais estrangeiros..
Atualmente, o Comitê Nacional para Refugiados (Conare) avalia 27,5 mil solicitações. Isso sem contar os 15,6 mil venezuelanos que pediram proteção até 1º de novembro.
— O Brasil não só tem condições de fazer mais como é do interesse brasileiro que a gente seja capaz de atrair mais estudantes, mais trabalhadores de diferentes ramos — avalia a professora Carolina Moulin, coordenadora de Graduação do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e mestre pela McMaster University, no Canadá.
Em 21 de novembro, a Lei de Migrações entrou em vigor equiparando direitos de estrangeiros e de cidadãos brasileiros e sepultando a antiga legislação, que muitas vezes criminalizava o recém-chegado. Para especialistas em fronteiras e mobilidade, como Moulin, vetos do presidente Michel Temer e o decreto que regulamenta a legislação podem comprometer a iniciativa, após 37 anos de luta dos movimentos de defesa dos migrantes para que valores democráticos e o princípio da igualdade servissem de base para a política migratória.
O Brasil se dize um país receptivo aos migrantes, já foi assim aqui, no Rio Grande do Sul no século 19, com a chefada de alemães, italianos e outros estrangeiros. No entanto, temos uma das menores taxas proporcionais de migrantes em relação à população total. Por quê?
A gente perde para todos os nossos vizinhos. Por uma série de motivos. A gente tem uma história migratória, o Brasil teve uma tradição de atração de mão de obra, por vezes de indução de mão de obra. A chegada dos italianos, dos alemães, foi uma política do governo brasileiro para atender a demandas da agricultura e também de embranquecimento da população. Havia uma combinação de interesse econômico, em um contexto de abolição da escravatura, de perda dessa mão de obra forçada, e de um projeto de engenharia social. Na segunda metade do século 20, isso vai arrefecendo. A gente não tem capacidade de atração, em um contexto também de expulsão por conta do regime militar, de crise econômica. O mercado de trabalho é elemento importante para o contexto migratório. Então, por muito tempo, a gente teve pouco interesse, alto contingente de desempregados, mercado de trabalho informal muito amplo e um marco regulatório ruim. Era muito difícil regularizar a situação de um imigrante no Brasil porque a percepção do ordenamento jurídico é de que esse estrangeiro era uma ameaça à ordem nacional. Todo o arcabouço era feito para não só dificultar a entrada mas também a regularização.
Há uma cultura de criminalização do estrangeiro?
A gente tem um problema fundamental. Fizemos a transição democrática, mas a gente não incorporou a dinâmica democrática não apenas nas normas e regulamentos da migração mas também no tipo de aparato, de órgãos que lidam com a temática. Há um sistema hoje com preponderância da política de controle migratório da Polícia Federal (PF). Um solicitante de refúgio tem de procurar a PF para fazer a solicitação. Você imagina um policial federal, que fez um concurso dificílimo, que depois teve de fazer curso de formação, no qual tem de aprender a dar três tiros em dois segundos. Esse mesmo agente tem de, em outro momento, fazer um trabalho humanitário, de escuta, compreensão, sensibilidade com uma pessoa que está fugindo de uma situação de profunda violência, de trauma. Tem uma disjunção desses processos, que torna muito difícil essa recepção. Uma das principais reclamações da população migrante diz respeito ao atendimento que recebe nos postos da PF nos aeroportos.
Como ocorre em outros países?
Há países em que há separação entre polícia migratória e polícia de fronteira. Uma das demandas da sociedade civil quando se começou a discutir uma nova proposta de política migratória era criar uma agência nacional de migrações. Um mecanismo mais colegiado, com participação da sociedade civil. No caso do refúgio, a gente tem o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare). A parte de vistos de trabalho é feita pelo Conselho Nacional de Imigração (CNig). Mas isso é no segundo momento. O primeiro contato da regularização é policial.
O que muda com a Lei de Migrações?
Agora, temos uma Lei de Migrações articulada com uma normativa internacional, de que migrar é um direito humano. O migrante é detentor de garantias, algumas delas em condições de igualdade ao brasileiro, como previsto na Constituição. A primeira coisa que a lei faz é mudar a ótica de um tema de segurança e ameaça para uma ótica de direito, da importância da presença do migrante para a economia brasileira, para o desenvolvimento. Quando a gente fala de migrante, pensa em mão de obra não qualificada, pobre, mas, na realidade, é uma série de pessoas, de estudantes de pós-graduação, professores, cientistas, empresários, aposentados que querem vir investir aqui. É um grupo de muita diversidade, muito heterogêneo. A segunda mudança é que a lei facilita o processo de regularização dessas pessoas no Brasil. Uma das grandes críticas foram os vetos presidenciais a artigos específicos. Foi vetado o artigo que dá anistia às pessoas que já estão em território brasileiro sob o argumento de que podem representar ameaça à segurança nacional. Esse é um argumento do Estatuto do Estrangeiro, que estava caduco já. Há uma tensão entre o espírito da nova lei e um governo que ainda está operando na lógica do Estatuto do Estrangeiro.
A senhora também critica o decreto que regulamenta a lei. Por quê?
Porque o decreto prejudicou e, em alguns momentos, contrariou dispositivos legais. Por exemplo, a lei tem um dispositivo que prevê que não se poderá prender um imigrante por ter entrado no território de forma irregular ou por estar aqui indocumentado. A prisão cautelar de uma pessoa por ausência de documentos não deveria ser feita. E o decreto prevê prisão cautelar. Outro exemplo: supondo que você é estrangeiro, quer morar no Brasil e quer trazer seu cônjuge, seus filhos, um irmão. Esse é um tema fundamental. As pessoas não vivem atomicamente. A lei prevê o direito à reunião familiar sem grandes exigências. O decreto cerceia esse direito. Estabelece que (o familiar) tem de ser maior de 18 anos e tem de ter comprovação de independência econômica do titular. Ele diminui o direito previsto na legislação, que é algo que um decreto não poderia fazer.
Não há um acompanhamento por parte do Estado em relação a imigrantes, principalmente haitianos e senegaleses. No passado, refugiados afegãos foram embora porque não conseguiram se inserir na sociedade e no mercado de trabalho.
A gente não tem uma política para migrantes, para refugiados, de inserção social desses grupos. E aí tem uma tensão do modelo federativo brasileiro. A política migratória é prerrogativa do governo federal, mas grande parte da dimensão mais assistencial, de acesso a direitos básicos, ou está estadualizada ou municipalizada. Você tem uma tensão aí entre quem define quem entra e quem provê assistência. Há um empurra-empurra de responsabilidades. O município vai dizer: "O Ministério da Justiça tem de mandar dinheiro para gente." O Ministério da Justiça vai dizer: "Quem tem de garantir vaga na escola, dar assistência à saúde, são os municípios e os Estados". A gente viu isso no caso dos haitianos. Isso gera um grande vazio em termos de políticas e uma enorme peso sobre a sociedade civil. Porque, na prática, quem faz política migratória no Brasil é a sociedade civil. Quem dá assistência, ajuda na matrícula da escola, negocia com o gerente do posto de saúde um atendimento é a sociedade civil.
O Brasil poderia receber mais imigrantes dado o tamanho do país?
É óbvio que poderia fazer mais. A gente tem 10 mil refugiados reconhecidos. Dez mil em uma população de 207 milhões. O Brasil não só tem condições de fazer mais como é do interesse brasileiro que a gente seja capaz de atrair mais estudantes, mais trabalhadores de diferentes ramos. Existe uma demanda em alguns setores. Se você olhar as resoluções do CNig nos últimos anos, algumas delas foram voltadas para atender a demandas específicas de alguns setores: indústria marítima, petroleira, setor de infraestrutura, quando dos projetos para a Copa, projetos de internacionalização das universidades. Para mão de obra não qualificada, que a gente crie condições para as pessoas se regularizem. É do interesse do mercado brasileiro que isso aconteça, não só para evitar que essas pessoas sejam colocadas em situação de absoluta precariedade e vulnerabilidade, mas também para a nossa economia. O trabalhador registrado contribui para o sistema.
A nova lei pode favorecer o discurso xenófobo, de que estrangeiros estão roubando os empregos dos nativos? Especialmente em tempos de crise?
Os grupos mais conservadores verbalizam mais do que os grupos progressistas. Aparecem mais do que as pessoas que têm uma visão de maior empatia, de abertura a esses grupos. Agora, isso é fato. É uma tendência mundial. Em um contexto de crise econômica, de restrição do espaço de direitos, de enorme ansiedade sobre o papel do Estado nas redes de proteção social, de precarização do mundo do trabalho generalizada, é óbvio que muitas dessas ansiedades são projetadas em espaços onde parece ser mais fácil culpabilizar. A figura do outro, que chega, o scapegoat (bode expiatório), um fantoche a partir do qual a gente pode projetar todas essas ansiedades e resolver essas questões. Temos de reconhecer que não existe nenhuma política ou lei migratória que tenha sido capaz de impedir a migração de pessoas. Você pode olhar nos EUA, na Europa, gastaram bilhões de dólares e de euros, durante décadas, para conter, vigiar a chegada desses migrantes. E eles continuaram chegando. E vão continuar chegando. Esse é um processo constitutivo da nossa condição contemporânea. A mobilidade é hoje uma dimensão fundamental da nossa vida. Não só das pessoas que vão chegar no Brasil quanto nossa. A política migratória é de dupla-face, é relativa aos estrangeiros aqui, mas é também relativa a nós que seremos estrangeiros em outro lugar. O impacto da legislação na circulação de pessoas é mínimo. A legislação tem impacto fortíssimo na capacidade de retenção e de inserção que essas pessoas têm no território. Ela não impede a chegada, mas precariza enormemente a permanência.