Na política, como se sabe, não há vácuo de poder. Diante do titubeante interesse americano na América Latina, a Rússia vem ampliando, silenciosamente, laços no continente. Dias atrás, escrevi neste espaço sobre o interesse do governo de Vladimir Putin em aproveitar o retrocesso das relações entre EUA e Cuba para retomar o protagonismo na ilha de Raúl Castro – inclusive com planos de instalar uma base naval a cem quilômetros da Flórida.
A oeste dali, no continente, outra medida expõe o ousado lance do Kremlin do lado de cá do planeta. Em parceria com a China, que paga as contas por meio da empresa Hong Kong Nicarágua Canal Development Investment Co (HKND), a Rússia participa ativamente da construção do Canal da Nicarágua, uma gigantesca obra de engenharia que abrirá uma rota alternativa ao Canal do Panamá, até hoje a única passagem entre os oceanos Atlântico e Pacífico, sem necessidade de circunavegação do continente.
Trata-se de um passo importantíssimo do ponto de vista geopolítico. Durante praticamente todo o século 20, os americanos dominaram o Canal do Panamá, ferindo o orgulho dos panamenhos, que tiveram seu território partido em dois e chegaram, no início da obra, em 1914, a precisar de passaporte para entrar em sua própria nação. A soberania sobre a rota só foi entregue ao Panamá em 1999. Orçado em US$ 50 bilhões, o Canal da Nicarágua, quando ficar pronto (a previsão é 2020), irá alterar a dinâmica regional, com China e Rússia em posição estratégica privilegiada. Em particular, o Kremlin já garante a segurança da construção e sua proteção contra possíveis provocações. Para isso, a Nicarágua permitiu a navios e aviões de guerra russos patrulharem a costa do país no Oceano Pacífico e no Mar do Caribe. Com o canal pronto, a Rússia poderia também passar com facilidade suas frotas de um lado para o outro sem pedir permissão – o que facilitaria inclusive manobras a partir de sua futura base em Cuba.
Para a China, abre-se um mercado ainda maior para seus produtos em todo o continente.A presença russa ampliada não é coincidência. Nas últimas décadas, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) fortaleceu sua presença no Leste Europeu, antiga zona de influência soviética.
A vingança vem lenta e gradual. Justamente em uma área que Washington considera seu quintal.