Os últimos dias abriram à sociedade os autos do processo que revela a tensão instalada no STF. Em matéria de transparência, senhores, a instituição chegou lá. E o que se vê não surpreende. Há muito venho criticando, por exemplo, o desembaraço com que o Supremo, em vez de propor leis ao Congresso, se põe a legislar contra a letra nua da Constituição, contra a vontade verbalizada por seus redatores, e contra posições majoritárias dos atuais congressistas e da sociedade. Da mesma forma, o STF invade a autonomia do Poder Legislativo sem cerimônia alguma, como fez ao invalidar as primeiras deliberações da Câmara dos Deputados no impeachment de Dilma. Mais, como esquecer que a Corte, no julgamento do mensalão, se recusou a ver formação de quadrilha naquela vasta estrutura montada para assalto aos recursos públicos, organização que o próprio Supremo, para facilitar seu trabalho, dividira em três núcleos (político, financeiro e publicitário)? Não abrandou ele, com a insólita decisão, as penas do núcleo que pilotava as ações criminosas? Aliás, alguém pode apontar no STF uma laboriosa determinação em expurgar da política os quadrilheiros que nela se locupletam e têm ali – supremo privilégio – foro especial por prerrogativa de função?
No mesmo dia em que o STF, após nove anos de sonolento peregrinar processual, decidiu fazer de Renan Calheiros réu por crime de peculato, uma outra ação, movida pela Rede, já colhia seis votos favoráveis. Era a maioria necessária para, posteriormente, determinar o afastamento de quaisquer réus ocupantes de cargos situados na linha sucessória do presidente da República. Medida tomada com base em sólidos fundamentos constitucionais. Mas o ministro Dias Toffoli, para surpresa geral, pediu vista e interrompeu o julgamento. Ao passarem três dias sem ressurreição eletrônica do processo, o ministro Marco Aurélio Mello mandou notificar Renan de que estava destituído da presidência do Senado. E foi o que se viu.
Renan Calheiros e muitos de seus pares são defuntos morais. As duas casas do Congresso Nacional estão tomadas pela Frente Parlamentar do Crime. Mas os poderes da República merecem respeito como instituições que são, mormente nas relações entre si, independentes e harmônicos que devem ser. Assim, erra gravemente o solitário ministro que, do alto de si mesmo, atropela decisão da instituição a que pertence para destituir o presidente de outro poder. E note-se: Marco Aurélio Mello fez isso alegando "periculum in mora", ou seja, urgência cautelar decorrente de perigo. No caso, isso significa que, na convicção do ministro, Renan Calheiros estaria – imagine só! – a um passo curto de assumir a presidência da República... Permanece envolta nas brumas da imaginação de Sua Excelência o motivo pelo qual haveria um risco de Temer e Maia transferirem bastão ao penúltimo da linha sucessória presidencial. Marco Aurélio acendeu a fogueira e seus colegas foram constrangidos a queimarem os dedos.
Na sala de estar dessa crise ganhava corpo, ainda, a parábola do escorpião e do sapo. A presença de um petista na cadeira do presidente do Senado punha em risco as urgentes reformas em curso. Assim, no último dia 7, o senador, que desatendera ordem judicial, foi dormir tranquilo enquanto o Supremo, agindo como Poder Moderador (alma perdida de nossas constituições republicanas), no pleno exercício dessa função política, engolia sapos em nome do bem comum. O Poder Moderador existe em quase todas as democracias estáveis, sendo função essencial do rei (nas monarquias constitucionais), ou do presidente (nas repúblicas parlamentaristas).
As questões de que aqui trato habitam o eixo de nossa deformidade institucional. De um lado, a fusão de Estado e governo na mesma pessoa nos deixa sem um poder moderador com autoridade e legitimidade para exercer essa função. De outro, as muitas funções do STF o sobrecarregam de atribuições diversas e contraditórias: falso poder moderador, última instância judicial, corte criminal para réus privilegiados e tribunal constitucional. Um Frankenstein.