O mundo se exclama diante da eleição de Donald Trump. Como pode alguém com tais características ser eleito na maior democracia do mundo? A meca do capitalismo mundial, do livre comércio, seduzida pelos acenos de rigoroso protecionismo? Onde foi parar o discurso da competição que gera a competência, beneficiando a todos? Que houve com "the land of the free, the home of the braves"? Decidiram os livres cercarem-se de muros e barreiras? Recolheu-se a bravura aos seus quartéis? Meu umbigo, minhas regras, my business?
Se não levo a sério a bazófia de Donald Trump, menos ainda me ajoelho ante as crenças de Hillary Clinton. O Partido Democrata representa cada vez mais um esquerdismo militante. Ademais, há uma vaga aberta na Suprema Corte e preenchimento pelo futuro presidente desempatará o jogo entre conservadores e progressistas. No poder, Hillary entregaria a maioria da Suprema Corte ao ativismo judicial e abriria a porteira para a judicialização das teses "progressistas". Autorizada pela tradição, note-se, a Suprema Corte dos Estados Unidos "legisla" legitimamente, decidindo sobre temas jurídicos e políticos da mesma forma que o nosso STF vem fazendo, com muito menor tradição e legitimidade. Ademais, o partido da senhora Clinton foi tomado pelo multiculturalismo que reverencia todas as culturas, mas detesta o Ocidente. Abraçou-se à tolerância, mas rejeita o conservadorismo, a direita e o cristianismo. São gritantes as semelhanças entre as pautas do Partido Democrata e as da esquerda brasileira e isso explica muitas reações à derrota da senhora Clinton entre formadores de opinião no Brasil. Foi como se houvessem perdido alguém da família. Não, definitivamente, o ano não lhes foi bom.
Não terá contado a favor de Trump o que era visto por muitos como defeito? Com a liberdade sufocada pela opressão do tal "politicamente correto", não terão, muitos eleitores, optado por um governo com mais testosterona? Quem sabe? Pessoalmente, alinho-me aos muitos que entendem o recente processo eleitoral como uma acirrada disputa entre dois males, tendo constrangido cada eleitor à subjetiva opção pelo que entendesse como o mal menor. E tenho aí o ponto que me interessa. O presidencialismo norte-americano conta mais de dois séculos de estabilidade política e institucional. Pois até ele, que já produziu tantos estadistas e é o único do qual se dizia funcionar bem, gera situações constrangedoras como esta. Por nossas bandas, estamos habituados. Vota-se, quase sempre, em quem não se desejaria votar para que não vença quem menos se quer vitorioso.
Proferida a sentença pela voz das urnas aqui, ou pelo Colégio Eleitoral, no complexo sistema de lá, o senhor Trump terá um mandato de quatro anos a cumprir e só o perderá mediante processo de impeachment que combine conduta criminosa com apoio parlamentar inferior a um terço dos cem senadores. Isso não faz sentido. Não responde à razão um modelo institucional que não permita afastar o governante desastroso. Se Trump efetivamente quiser fazer, puder fazer e fizer tudo que sugeriu ou com que se comprometeu durante a campanha eleitoral, será um desastre. O que resguarda um pouco melhor a situação do país é que lá a federação funciona, quem governa são os governadores e o Congresso tem grande força sobre os atos da administração federal e sobre a política externa. O presidente norte-americano é muito mais chefe de Estado do que chefe de governo.
No Brasil, a República significou um simultâneo rompimento com as raízes europeias de nossa cultura política. Após quatro séculos, refluíamos do além-mar e nos voltávamos para os "irmãos do Norte", dos quais copiamos a forma de Estado (federação) e o sistema de governo (presidencialismo). Mas ao fundir inteiramente a chefia de Estado com a de governo, estragamos mais o que já não era bom.
Se nossas próprias experiências desastrosas de nada nos serviram ao longo de mais de um século, quem sabe aprendemos algo com as experiências alheias?