Nem sei qual a maior saudade, será que é dos longos papos que furavam as madrugadas na Praça da Alfândega, ali perto do Clube do Comércio, aquele ajuntamento de estudantes, bacharéis, jornalistas, atores de teatro, policiais, intelectuais, comissários de menores, médicos, jornalistas, desocupados, cafetões, alguns dos mais saborosos tipos populares da cidade, seja pela extroversão, seja pela demência, um desfile extraordinário da raça humana e do comportamento humano, numa verdadeira revista diária que tinha como palco a Rua da Praia do tempo em que Porto Alegre registrava dois assaltos por ano?
Será que é daquela multidiversidade cultural, folclórica e mundana que tresandava da praça e do Largo dos Medeiros, epicentros pulsantes da cidade, que eu tenho saudade?
Ou simplesmente eu tenho saudade da minha juventude? Não posso ter saudade de uma juventude inútil e desperdiçada, seja pela pobreza, seja pelas tonteiras de rapaz.
Na verdade, o que me dá saudade é o Matheus. Toda a minha geração carrega uma profunda saudade da Confeitaria Matheus.
Era ali na boca maldita, ao lado do Restaurante Capri, pouco adiante o Restaurante Ghilosso, debaixo do Grande Hotel, mais para trás, depois de onde existiram o Café Rex e o Diário de Notícias, a Xangrilá, uma famosa loja de tecidos, na esquina com a Ladeira.
Ali era a nossa Broadway iluminada, o centro das novidades, o bazar das surpresas, o êxtase existencial, era impossível deixar de ir ali todos os dias como imperativo de vida e de prazer.
Mas a saudade que bate fundo é do Matheus. O Zé Matheus na porta, dono do estabelecimento, misto de empresário e de malandro, com as imensas suíças e a corrente de ouro que segurava o relógio de bolso derrubando-se sobre o púbis, o enorme anel de ouro como símbolo da prosperidade e a fala crivada de gírias indicando a falsa malandragem.
E a saudade localizada é a do sanduíche de pernil de porco do Matheus. Por onde ando, encontro incontáveis pessoas que se derramam ainda em elogios ao sanduíche de pernil do Matheus, delícia de lanche que nunca mais foi superada nesta cidade, apesar de todo o progresso.
E por que nunca mais se encontrou em lugar algum batida de abacate mais saborosa que a que se tomava junto com o sanduíche de pernil, naquele box da frente do Matheus? Zé Matheus se gabava de que era por causa do leite, que vinha direto de sua granja.
Por que não há nada hoje na cidade que àquela batida se equipare?
Amigos, venham comigo, já passaram pelo balcão em que eram servidos o sanduíche e a batida mais espetaculares da história da humanidade.
Aproximem-se, passem pelo balcão lateral do Matheus onde ficavam as balas, os doces, os cigarros.
Venham até o balcão dos fundos do Matheus (ah, devem chorar de saudade aqueles que o conheceram!) e desfrutem agora da suprema iguaria, do manjar dos deuses, do bauru do Matheus.
O pão do bauru do Matheus era o filho mais legítimo dos trigos! Nunca mais, incrivelmente, com todo este progresso, qualquer padaria chegou próximo da fórmula daquele luxuriante pão do bauru do Matheus!
E o filé era encoberto por um queijo que se derretia tanto, que as suas lavas brilhantes desciam das duas fatias de pão e se esparramavam sobre a chapa da fritura e logo depois sobre o guardanapo em que era envolvido o divino e inesquecível bauru do Matheus, antes de ser entregue a nós, clientes.
Nunca foi igualado o bauru do Matheus. É tão simples fazer um bauru, mas aquele segredo morreu com o Zé Matheus, o seu bauru fez o deslumbramento e o orgasmo culinário de toda uma geração.
Hoje, apenas o bauru ou sanduíche de filé do Joe's, na Ramiro, se aproxima e vai ganhando tradição, assim mesmo muito distante do edenístico bauru do Matheus.
Não sei bem o que me dá maior saudade, os papos que atravessavam a madrugada na Praça da Alfândega, a cidade que gozava dos últimos estertores da segurança e tranquilidade públicas – esperem, claro que sei o que me dá uma saudade de doer por não ter podido nunca mais desfrutá-los: são o sanduíche de pernil e o bauru do Matheus.
Se existe céu, me encontrarei sem dúvida com eles lá no paraíso.
Crônica publicada em 11/02/2001