Entende-se de baixo nível a televisão brasileira, mas desconhece-se a função primordial de lazer que ela encerra para as multidões brasileiras.
Eu me lembro de que, na infância, há 50 anos, a única diversão que eu tinha era anunciada: a matinê de domingo no Cinema Brasil, Avenida Bento Gonçalves, ou no Cinema Miramar, na Aparício Borges.
Eu ficava a contar os tostões durante toda a semana, na esperança de que eles pudessem bastar para comprar a entrada da matinê de domingo. Era um dia só de diversão, uma data marcada, uma solenidade para o espírito, a única grande atração da arrastada existência infantil daquele tempo.
E lá ia eu para ver o Gunga Din, Sansão e Dalila, com Hedy Lamarr e Victor Mature, todos os filmes de Robin Hood, os seriados completos ou parte deles, Aladim e a lâmpada maravilhosa, o sonho de criança embalado uma vez por semana, apenas uma tarde, o resto era estudo ou trabalho.
À noite, nós, crianças, íamos dormir cedo, logo depois da janta. O rádio era odiosamente privativo dos nossos pais, que o colocavam na cabeceira da cama de casal do quarto e ficavam até tarde a ouvir as novelas ou os programas de auditório. Se por vezes algum programa nos interessava, tínhamos que ir de pé em pé até a porta do quarto dos pais e espreitar na escuta clandestina.
Hoje, quando vejo as crianças de posse do seu televisor no quarto, ou até mesmo dividindo com os pais o aparelho da sala, os mais bem dotados com seu computador particular, noto que nem imaginam como são felizes em comparação com a nossa infância oprimida e sem acesso à cultura e ao divertimento.
Hoje, quando vejo as crianças de posse do seu televisor no quarto, ou até mesmo dividindo com os pais o aparelho da sala, os mais bem dotados com seu computador particular, noto que nem imaginam como são felizes em comparação com a nossa infância oprimida e sem acesso à cultura e ao divertimento.
As crianças de antigamente viviam na escuridão, escravizadas na relação tímida com as outras na escola ou nos folguedos das ruas, sem a visão universal da realidade que a televisão hoje lhes empresta, tornando-as desde cedo intelectualmente mais ágeis, na verdade mais preparadas para a vida, sem a prisão dos tabus, sem medo do sexo, sem segredos, mas principalmente mais divertidas e prazerosas, curtindo a existência em todos os momentos do dia.
Se as crianças de hoje soubessem como foi triste e monótona a vida de seus avós e ancestrais, se apiedariam deles e ao mesmo tempo agradeceriam aos céus a vida venturosa que têm, incomparavelmente mais atraente e mais vasta, melhor curtida, mais intensamente vivida, justamente no período mais fértil da formação do espírito e da inteligência.
Não tenho dúvida de que o passado apenas serviu para emburrecer as gerações, em comparação com a civilização atual. Uma criança de hoje, na média, seria considerada gênio perto de uma criança de antigamente. E a diferença é a alegria do conhecimento que a criança de hoje desfruta, enquanto as crianças de outrora eram condenadas a só o acessarem nos burocráticos e frios bancos escolares.
Este é o mais importante lado do progresso, que nos passa despercebido. Se o homem mergulha hoje na depressão e no estresse muito mais do que antigamente, é também porque se verifica um choque entre a sua infância bem nutrida de conhecimento e lazer e a dura realidade da vida de adulto, que tem de dar duro para subsistir.
Enquanto antigamente as crianças se libertavam do seu período de sombras da infância quando se tornavam adultos, hoje se verifica o contrário. O trabalho, que antes era o céu para o homem que se livrava das cavernas da infância, hoje, até mesmo pela incerteza do desemprego ou dos salários insuficientes, é a grande decepção dos adultos que viveram um tempo de deliciosas aventuras pelo terreno de sonho da infância descompromissada diante da televisão.
Crônica publicada em 12/04/99