Leitor, nesta época do ano, é difícil dizer coisa com coisa. Os cérebros entram em recessão sincronizada. O lugar-comum reina inconteste. As piores trivialidades ganham ares de sabedoria. Proliferam as invocações apócrifas de grandes nomes. Fernando Pessoa, por exemplo, sofre.
O momento atual é especialmente ingrato e até os expedientes mais corriqueiros não ajudam nada. Recuso-me, por exemplo, a tentar uma retrospectiva de 2016 – ano que, como disse alguém, nem deveria ter começado. Perspectivas para 2017? Nem pensar.
Vejamos. Ocorre-me falar um pouco sobre Abraham Lincoln. Em novembro, pretendia escrever sobre ele – quando, de repente, os americanos resolveram eleger Donald Trump. Desisti.
Bem, passaram-se dois meses e agora posso voltar ao maior dos presidentes dos Estados Unidos. Era um estadista, sem dúvida. Venceu uma das mais sangrentas guerras civis da História, mantendo a união do seu país.
Lincoln tinha, além disso, o dom da palavra. Mais do que isso: foi um grande escritor. Diferentemente dos políticos de hoje, escrevia de próprio punho seus discursos e correspondência.
E investia muito tempo e cuidado, mesmo nos momentos difíceis, em prepará-los e revisá-los. Alguns dos seus pronunciamentos entraram para a História. No Memorial Lincoln, em Washington, D.C., dois deles estão inscritos em pedra: o discurso de Gettysburg e o segundo discurso de posse. Recomendo ao leitor que os leia ou releia. São primorosos, do começo ao fim. E têm, ademais, a virtude da brevidade.
Mas o meu favorito, menos conhecido, é o pequeno discurso de despedida, em Springfield, Illinois, em 1861, quando Lincoln iniciava a viagem para a posse em Washington – especialmente a passagem em que, com sentido de predestinação, dizia: "Estou agora de partida, sem saber quando, ou se jamais voltarei, e com uma tarefa diante de mim maior do que aquela que pesava sobre Washington".
Disse isso tranquilo, com naturalidade – e ninguém estranhou a enormidade do que acabara de ser dito. O momento era grave, uma guerra civil parecia prestes a estourar; só que Lincoln era um político provinciano e, mesmo eleito presidente, ainda subestimado por muitos. A audácia de dizer que a sua tarefa era maior do que a de George Washington, o grande herói do país, o líder da guerra de independência! Mas por um instante, imagino, foi como se todos os presentes se dessem conta de que aquela partida era quase uma sagração e aquelas palavras mais do que qualquer coisa que Lincoln pudesse proclamar em sua posse formal.
Lincoln era também um homem simples e de grande senso de humor. Célebre por suas histórias e anedotas, levava seus ministros à loucura quando, até em momentos de emergência, interrompia graves discussões para relatar episódios e contar casos, às vezes apenas remotamente ligados aos pontos em questão. O filme de Spielberg sobre Lincoln retratou bem esse seu lado.
Uma das suas histórias é especialmente instrutiva. Um rapaz disputava um emprego público e para tal precisava responder a um questionário. Estava indo muito bem até que esbarrou numa questão delicada: causa da morte do pai? É que seu pai tinha sido enforcado como ladrão de cavalos.
O candidato pensou, pensou, até que veio a luz: "Meu pai participava de uma cerimônia pública, quando a plataforma cedeu".
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