Pretendia escrever hoje sobre Abraham Lincoln. Mas como, pergunto, se os americanos resolveram eleger Donald Trump? Vamos focar no presente então; Lincoln fica para outra ocasião.
Muitos se declaram surpresos, decepcionados e até revoltados com a grande nação do Norte. As elites no mundo todo, inclusive no Brasil, estão dando os proverbiais arrancos triunfais de cachorro atropelado. As elites brasileiras, diga-se de passagem, cultivam um profundo complexo de vira-lata e têm nos Estados Unidos uma referência insubstituível. Como vou explicar a meus filhos, perguntam alguns? Em certos casos, a revolta chega perto, muito perto de questionar o sufrágio universal.
A unanimidade da turma da bufunfa nesse assunto dá o que pensar, leitor. Não é fácil entender o que aconteceu, é verdade. Mas uma coisa salta aos olhos: o povo americano se recusou a seguir os alertas e recomendações da mídia, do establishment político e dos economistas. Cada vez mais, o povo foge como o diabo da cruz das recomendações dos bem- pensantes. Nesse ambiente, nada pior para um candidato do que receber o endosso da plutocracia financeira e seus numerosos asseclas.
Certo padrão vai se configurando. Há crescente insatisfação, não só nos EUA como em diversos outros países desenvolvidos, com os rumos da economia e a concentração da renda, da riqueza e do poder político. Isso se expressa na eleição de um outsider nos EUA, na vitória do Brexit no Reino Unido e no crescimento de partidos nacionalistas de direita na Europa.
Como explicar essa crescente insatisfação? O aspecto econômico parece fundamental. Atravessamos nas décadas recentes um período de aceleração dos fluxos econômicos internacionais, particularmente os financeiros – a chamada globalização –, conjugada com e fomentada por uma revolução tecnológica na área da informática e das telecomunicações – a chamada digitalização. Essas transformações têm tido impacto devastador sobre muitos setores da economia.
É o que Schumpeter denominava "destruição criativa" – típica do capitalismo. Um exemplo marcante dessa destruição é o cinturão industrial do Meio-Oeste americano – "TrumpLand", segundo o cineasta Michael Moore. Com a integração internacional da economia e as mudanças no modo de produzir entram em decadência fábricas, empregos e, com eles, bairros e até cidades. As estruturas físicas vão sendo substituídas por estruturas virtuais. E junto com as estruturas físicas desaparece o modo de vida de segmentos inteiros da sociedade.
As rápidas transformações econômicas e os violentos deslocamentos delas decorrentes geram insegurança e constituem campo fértil para a radicalização política. Um elemento central dessa radicalização tem sido a ascensão de um nacionalismo defensivo e xenófobo, que inclui a hostilidade ao imigrante, uma tendência ao protecionismo e a rejeição dos valores proclamados pela elite internacionalizada.
A credibilidade do "establishment", especialmente da plutocracia financeira, nunca se recuperou do abalo provocado pela crise de 2008-2009 e da subsequente revelação das práticas criminosas amplamente disseminadas nos meios financeiros dos EUA. Wall Street apoia Hillary? Ponto para Trump. Economistas renomados assinam carta aberta a favor de Hillary? Ponto para Trump. Líderes republicanos preferem Hillary? Ponto para Trump. Grandes empresários temem Trump? Ponto para Trump.
Era uma escolha de Sofia. Triste cenário para quem já teve um Abraham Lincoln.
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