Coração, palavra emblemática. Ocupa, desde sempre, o lugar de metáfora para tudo que há de afetivo, sentimental, impulsivo em nós – pela simples razão de que o coração palpita mais forte a cada choque emocional que recebemos, a cada risco que tomamos, a cada momento de beleza que nos é concedido. Em todas as línguas, coração tem conotações desse tipo. Como soa bonito em italiano, por exemplo, cuore, ou em francês, coeur, ou mesmo nas línguas germânicas, geralmente mais ásperas – heart em inglês, Herz em alemão.
Na poesia, na literatura, na canção, o coração aparece e reaparece como elemento central. É quase um sinônimo de beleza e, como ela, flutua ambivalente entre a verdade e o poder. Em certas manifestações, submete-se ao poder, serve seus propósitos escusos, e até criminosos, sem – paradoxalmente – desvirtuar-se. Paradoxo intrigante. Em todos seus descaminhos, o coração permanece fiel a si mesmo.
O verdadeiro artista sobrevive – intacto, em última análise – a todos os cataclismas morais e políticos a que possa ter se associado. Richard Wagner, Richard Strauss, Gustav Gründgens, Wilhelm Furtwängler, Herbert von Karajan, todos eles artistas geniais, colaboraram com o nazismo. Wagner que foi, como se sabe, de longe o compositor predileto de Hitler, serviu de trilha sonora do NSDAP, mas acabou se recuperando dessa associação comprometedora. Todos os mencionados, sem exceção, são hoje fervorosamente admirados. O artista, sendo como é guardião maior das coisas do coração, acaba perdoado, cedo ou tarde.
Leitor, o artigo acabou. Sobrou espaço (isso nunca acontece, antes o contrário). Como continuar? Vejamos. Posso reprisar uma passagem maravilhosa em que Nietzsche introduz a palavra coração, com belo efeito dramático, para culminar uma reflexão sobre o que significa o reino dos céus para Cristo e os primeiros cristãos. Aliás, a passagem consta de "Anticristo – Maldição contra o Cristianismo", livro de Nietzsche em que coexistem, estranhamente, violentos ataques ao cristianismo com trechos que revelam compreensão comovida da mensagem de Cristo.
O reino dos céus, escreveu ele, não é algo que está "acima da terra" ou que vem "depois da morte". Está, por assim dizer, além do espaço e do tempo. O próprio conceito de morte natural está ausente do Evangelho. A "hora da morte" não é uma noção cristã – a "hora", o tempo, a vida física e suas crises sequer existem para Cristo, diz Nietzsche. E arremata: "O 'reino de Deus' não é algo que se aguarde, não tem ontem nem depois de amanhã, não virá em mil anos – é a experiência de um coração; está em toda parte, não está em parte alguma...".
Veja, leitor, o que significa escrever bem. Eis o artista. E Nietzsche ele mesmo deu talvez a melhor definição do que é ser artista: considerar como conteúdo mesmo da arte e da vida aquilo que os não artistas denominam "forma".
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