"Como é remoto o passado recente", dizia Nelson Rodrigues. Lembrei-me da frase por causa da divulgação de um relatório sobre o papel do FMI nas crises da Grécia, da Irlanda e de Portugal. É uma análise muito crítica, produzida pelo Escritório de Avaliação Independente da instituição. Durante oito anos, fui diretor executivo do FMI pelo Brasil e outros países e participei intensamente da discussão, particularmente do programa da Grécia, um dos maiores fracassos da história do Fundo. A cadeira brasileira na Diretoria Executiva teve grande destaque nesse debate.
Isso foi no período 2010-2015 e, no entanto, parece tão distante! Agora estou aqui em Xangai, ajudando a construir um novo banco de desenvolvimento, e a leitura desse relatório me deu a estranha sensação de estar lendo sobre fatos ocorridos em outra vida, remota, completamente diferente da atual.
No que diz respeito à Grécia, o relatório tira as seguintes conclusões, entre outras: 1) a decisão de não incluir uma reestruturação da dívida logo no início do programa levou a um ajuste fiscal excessivo e a uma grande recessão; 2) essa decisão sacrificou a Grécia, mas beneficiou os credores externos privados, que puderam cortar a sua exposure ao país graças à provisão de recursos oficiais; 3) em aspectos cruciais, o FMI aceitou se subordinar às prioridades e decisões da União Europeia; 4) ao conceder empréstimos de grande magnitude à Grécia, o FMI atuou de forma pouco transparente e não seguiu os seus próprios procedimentos; 6) a Diretoria Executiva do FMI foi mantida à margem de muitas discussões e nem sempre foi consultada ou sequer informada de maneira apropriada.
Queria dizer, leitor, que todas essas conclusões do relatório, sem exceção, foram tiradas pela cadeira brasileira no FMI no calor da hora. E foram expressas por nós de forma enfática, repetidas vezes, verbalmente e por escrito. Veja bem: no calor da hora – e não com a confortável sabedoria ex post de quem escreve cinco ou seis anos depois. E por assim proceder tivemos que enfrentar hostilidade e represálias de outras cadeiras da diretoria, da Administração e do staff.
Os problemas eram tão graves que, depois de algum tempo, resolvi trazê-los a conhecimento público (sem violar, diga-se de passagem, nenhuma regra da instituição). A minha popularidade dentro do FMI bateu recordes...
Para um brasileiro, não era tão difícil empatizar com a Grécia. Afinal, o Brasil passara por massacre semelhante na década de 1980. Eu mesmo tinha vivenciado a crise da dívida externa daquela época como funcionário do governo brasileiro. Ou seja: o Brasil já era, em 2010, credor do FMI, mas o diretor brasileiro no Fundo continuava com coração de devedor.
Em duas ocasiões, decidi me abster em votações referentes à Grécia. Em outra ocasião, cheguei a deixar a cadeira vazia para indicar o meu desconforto com a maneira como o programa estava sendo conduzido. Isso pode parecer pouco, mas num ambiente em que a abstenção é rara, ela ganha sabor de oposição. E, nos meus oito anos de FMI, nunca vi outro diretor deixar a cadeira vazia.
A discussão, muito acirrada, durou anos e anos. Em certo momento, por conta da crise da Grécia, quase conseguiram me derrubar do FMI. Foi por um triz.
Mas o meu espaço acabou. A continuação fica para outra ocasião.
O colunista é vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, sediado em Xangai, mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal.