Faz 25 anos que Ivete Spindola pega moradores de rua pelo braço e os leva para fazer documentos. Não lembra quantos já ajudou: no mínimo 30, ela calcula – sem contar, claro, as doações de roupa, comida e alimento que faz quase todo dia.
Solteira e sem filhos, a geógrafa de 59 anos diz que “não precisa ser doutor para sentir a dor do outro”. E, sem os documentos, segundo ela, fica bem mais difícil alguém pôr fim à própria dor:
— A pessoa não existe. É completamente invisível.
Faz sentido: para ter acesso a benefícios como aluguel social, seguro-desemprego ou Bolsa Família, a documentação é imprescindível. O caso de Cléber Martins, que vive embaixo de marquises na Rua dos Andradas é um bom exemplo.
Em uma noite de junho, ao ver Ivete passando, ele mostrou um corte profundo na mão esquerda – tinha se machucado ao revirar um contêiner. Seria bom consultar um médico, mas Cléber contou que, no dia anterior, quando buscava atendimento em um hospital, a recepcionista havia lhe exigido um documento.
Ivete, como de costume, pegou o homem pelo braço. Após um pulo na Unidade de Saúde Santa Marta, especializada em atender moradores de rua, levou Cléber à Associação Intercomunitária de Atendimento Social, na Demétrio Ribeiro. Ali, a certidão de nascimento sai de graça.
— Eles já tiveram uma certidão um dia, mas, na rua, acabam perdendo ou deixando para trás. Não é difícil tirar a segunda via — afirma ela.
Em uma vaquinha online, Ivete ainda arrecadou R$ 765 e comprou um carrinho para Cléber trabalhar como catador. Hoje, a certidão dele fica com ela. Em uma gaveta na sala de casa, a geógrafa guarda a documentação de outros três sem-teto: são eles que preferem assim, que é para a papelada não estragar.
— Qualquer um pode me ligar ou bater aqui em casa sempre que precisar — sublinha Ivete.
A meta dela, depois da certidão e do RG, é sempre fazer o título de eleitor. Porque, quando podem votar, segundo Ivete, os políticos enfim passam a enxergá-los.
Com Rossana Ruschel