A estrondosa repercussão de mais uma campanha criada por mulheres – agora com o mote "Mexeu com uma, mexeu com todas", em apoio à figurinista abusada por José Mayer – me fez refletir sobre uma contribuição específica desse novo feminismo. E ela está nas palavras.
Há uma série de neologismos difundidos pelo movimento, entre eles sororidade (o pacto de união entre as mulheres), empoderamento (aumento da participação política e social) e objetificação (ato de tratar alguém como objeto), mas nenhum deles me parece mais oportuno do que culpabilização.
A culpabilização da vítima, você deve saber, ocorre quando uma mulher é responsabilizada pelo abuso que sofreu. Quer dizer: se ela for estuprada, alguns dirão que, ora ora, ninguém mandou usar roupa curta, ninguém mandou andar tarde na rua, ninguém mandou se portar como vadia. Não faltou, aliás, quem julgasse a figurinista Susllen Tonani, vítima dos abusos de José Mayer, como uma oportunista em busca de fama.
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Mas quando a expressão foi criada em inglês pelo sociólogo William J. Ryan, em 1971, culpabilização da vítima nada tinha a ver com feminismo. No livro Blaming the Victim, Ryan analisou como a classe média americana enxergava os negros pobres. E concluiu que enxergava assim: como responsáveis pela própria pobreza. Poucos, na classe média, reconheciam os 250 anos de escravidão ou a posterior segregação racial como fatores determinantes para a desigualdade econômica – a maioria apontava a preguiça, a bebedeira, a vagabundagem e outras escolhas pessoais como causas da desgraça alheia.
Ou seja, culpa da vítima: o pobre era pobre porque queria.
Condenar quem se deu mal sempre foi uma prática habitual na história da humanidade. Há uma abundância de bons exemplos no Antigo Testamento, que bota catástrofes naturais e tragédias de todo tipo na conta das vítimas pecadoras. Embora o feminismo tenha se apropriado do termo para falar de abusos e estupros, a culpabilização ainda aparece em uma série de outras situações.
Depois de qualquer ataque terrorista, por exemplo, líderes do mundo inteiro passam a exigir que a entrada de refugiados em seus países seja suspensa. Na prática, estão fazendo o quê? Jogando a culpa sobre as maiores vítimas do terrorismo: gente sem casa, sem comida e sem dignidade que se vê comparada, por esses líderes, aos assassinos de suas próprias famílias.
O mesmo ocorre quando alguém é assassinado na periferia e a imprensa ressalta que o sujeito "tinha antecedentes criminais". Nem sabemos por que o coitado foi morto, mas já damos um jeito de culpar o defunto. Nos diálogos do dia a dia, em especial nos posts enfurecidos das redes sociais, a culpabilização da vítima se manifesta o tempo todo:
– Bateu panela contra a Dilma e agora quer reclamar? Não mesmo, a culpa é sua!
Ou:
– Parabéns a quem votou no Sartori – e lá vem a frase de novo: – A culpa é sua!
Não é, não. Quem votou em um mau governo é tão vítima dele quanto quem votou em outro candidato: todos sofrem igualmente com os horrores de uma má gestão. Na verdade, o eleitor de um mau governo talvez seja a maior de todas as vítimas, porque confiou e acabou tapeado pelos culpados de verdade.
Uma vítima sempre vai precisar de apoio, nunca de um dedo na cara – seja a figurinista abusada por José Mayer, um refugiado em pânico ou um eleitor frustrado. Quando essa consciência que o feminismo prega – a consciência de que a vítima jamais tem culpa – se espalhar para todas as esferas das relações humanas, então teremos uma sociedade mais tolerante e misericordiosa.
Estamos no caminho. Já temos um termo adequado para denunciar essa violência. Verdade que culpabilização é um neologismo estranho, como estranhos são sororidade e empoderamento, mas todos eles já se mostram indispensáveis.