Nove e meia da noite, na Lima com a República, a gente se abanca em uma mesa na rua e chega um engraxate. Ele não pede; ele exige, implora, suplica para engraxar minhas botas, só que minhas botas são de camurça, e aquele troço é para couro. Tento argumentar, ele mal me escuta, pede por favor, diz que tem fome, que tem filhos, que tem dores, que tem aids. Tá bem, dou-lhe R$ 5 e minhas botas viram lixo.
Nosso grupo retoma o papo, pede uma batata, mas uma mão distribuindo papelzinho interrompe: "Por favor, ajude minha família a continuar tendo onde morar. Que o desejo de ajudar o próximo vença o egoísmo e a falta de esperança no ser humano". Tenho esperança no ser humano: dou mais cinco para o guri surdo.
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Em seguida chega ela. Não pesa mais de 40 quilos, vive zanzando por ali, a cara chupada e roída pelo crack. Todos negam esmola, ela pede um pedaço de torrada e meu amigo dá.
– Sai daqui, ô demônio! – é o garçom que grita com ela.
– Vai tomar no rabo! – ela rebate, pega a comida e vai embora.
Outro pedinte vem de cadeira de rodas, outro entrega uma oração de Nossa Senhora da Conceição, um terceiro pede cigarro, um quarto chora ao falar da filha – em duas horas, recebemos 10 deles, um a cada 12 minutos. Na hora de ir embora, esqueço que ao engraxar as botas eu havia deixado no chão, equilibrada entre a mesa e a parede, minha pasta com documentos, cartões, notas fiscais e algum dinheiro.
Voltei ao bar no outro dia. Nada. Escrevo este texto na fila do Tudo Fácil, ainda sonhando com a "esperança no ser humano", como pedia o papelzinho.
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