O La Urna, não sei se vocês já viram, é um programa de entrevistas conduzido por quatro jornalistas – eu, o Potter, o Arthur Gubert e a Débora Cademartori. São entrevistas com candidatos a cargos públicos. Na temporada mais recente, quando sabatinamos os aspirantes à prefeitura de Porto Alegre, um dos entrevistados me perguntou:
– Mas por que tanta gente?
Bem, primeiro que é mais difícil enrolar quatro do que enrolar um. E também porque a diferença de perfis entre os jornalistas enriquece as entrevistas. Débora, por exemplo, é uma repórter de política, conhece os bastidores dos partidos e a trajetória recente dos candidatos. Arthur é um comunicador de raciocínio rápido, consegue suavizar o clima tenso e fazer perguntas que ninguém espera. Potter tem uma capacidade impressionante de enxergar qualquer assunto por um novo ângulo. E eu, bem, eu tenho a sorte de contar com eles.
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Quando criamos o formato do programa, na eleição de 2014, nossa inspiração maior foi o Roda Viva, da TV Cultura. Sempre me pareceu genial aquele bando de jornalistas interrogando com ardor um único entrevistado: a impressão era de que jamais um convidado deixaria aquela arena sem que todas as perguntas fossem respondidas. Porque pelo menos um dos entrevistadores sempre se daria conta, sempre pensaria "epa, não vem nos enrolar".
Reproduzimos essa premissa no célebre La Urna com José Ivo Sartori, então candidato a governador do Estado. Tínhamos um roteiro de perguntas, mas todo o script foi para as cucuias quando Sartori, estranhamente, resistiu em nos apresentar "uma única proposta com início, meio e fim". Danem-se as outras perguntas, dedicamos quase o programa inteiro a implorar pela proposta que nunca vinha. Quer dizer: em certas situações, o roteiro não só pode como deve mudar.
Tudo isso aprendi com o Roda Viva, que há 30 anos presta um serviço importante para o país. E é justamente a minha admiração pelo programa, quase uma idolatria, que me permite afirmar com profunda tristeza que, na segunda-feira passada, sua história foi violentada. Em uma hora e meia de entrevista com o presidente Michel Temer, o programa esteve irreconhecível. Temer dizia o que queria, ninguém retrucava, ninguém contestava, ninguém discordava.
Não quero aqui parecer prepotente – boa parte daqueles entrevistadores tem trajetórias irretocáveis, e certamente a contribuição deles para a sociedade é 50 vezes maior do que a minha. Aliás, jamais fui a público criticar um colega de profissão, mas me parece necessário, neste caso, dizer que a chamada "grande imprensa" não pode ser representada pelo que se viu na segunda-feira.
Não vou questionar a isenção moral dos entrevistadores, nem tecer teses levianas sobre suas inclinações ideológicas. A questão talvez seja outra: parece haver uma certa condescendência em torno de Temer, algo na linha do "deixa o homem trabalhar", algo até bem-intencionado, como se dissessem "tudo bem, ele pode estar errado aqui e ali, mas existe um interesse maior para considerarmos, que é a reconstrução de um país em frangalhos".
Não tenho certeza sobre o que houve naquela desastrosa entrevista – talvez tenha sido apenas um mau dia de bons jornalistas. Mas, por mais que torçamos honestamente pelo avanço do país, não há como ser honesto com a democracia sem questionar, cobrar, expor contradições e exigir respostas de um governante. Porque, quando um entrevistado enrola os entrevistadores, está enrolando o público. E não há democracia se a imprensa permite que um governante enrole seus governados.
Foi o Roda Viva que ensinou isso ao La Urna. Ensinou, por exemplo, em uma emblemática entrevista com o então presidente Lula, em 2005, na qual os jornalistas exerceram pressão violentíssima – e exemplar. Torço para que os velhos tempos voltem logo.
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UMA PERGUNTA PARA CAIO TULIO COSTA
Professor da ESPM de São Paulo, doutor em Comunicação e ex-ombudsman da Folha de S.Paulo
Os entrevistadores do programa Roda Viva, da TV Cultura, não pegaram leve demais com Michel Temer? Não perderam a chance de emparedá-lo em uma rara oportunidade de estar frente a frente com o presidente da República?
Não é simples emparedar uma velha raposa da política. Os entrevistadores do presidente Michel Temer no Roda Viva nem sequer tentaram. Fizeram as perguntas necessárias. Propuseram temas complexos – denúncias contra o partido e contra ele próprio, instabilidade política, Romero Jucá, mágica com o orçamento, reforma previdenciária, reforma trabalhista, prisão de Lula e até mesóclises –, mas não replicaram. Não redarguiram. Não refutaram. E nem se indignaram por Temer ter enrolado a todos.