Fui ao cinema ver Elle, do holandês Paul Verhoeven. Vou resumi-lo: uma mulher louca, que tem uma mãe louca, trata mal o filho louco porque ele é casado com outra louca. E a coisa fica mais louca quando a mulher louca – cujo pai também é louco – é estuprada por um louco.
Costumo achar esse tipo de filme horrível. Ninguém nunca vale nada, todo mundo é uma aberração moral fedendo a egoísmo e perversão. Vencedor do Oscar em 2000, Beleza americana é o exemplo mais expressivo dessa misantropia recente: o protagonista é um tarado tentando comer a amiguinha da filha adolescente, a mulher dele é uma imbecil frívola e consumista, o vizinho é um coronel autoritário que se revela gay enrustido, o filho do coronel é um traficante que propõe matar o sogro, enfim, um festival de patologias mentais, dissimulações, traições, frieza e esterilidade afetiva.
É óbvio que a loucura anda solta por aí. Também é óbvio que a loucura habita cada um de nós. Só que as pessoas são menos óbvias do que isso. Fazer uma crítica social – como Beleza americana se propunha – reduzindo todos os personagens a um apanhado de demências sempre me pareceu simplista, raso demais e, principalmente, muito fácil. "Vamos dizer que todo mundo é louco porque assim a gente mostra como a sociedade é louca". Nossa, genial.
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Agora que já expus minha renitência a esse tipo de abordagem, preciso reconhecer o seguinte: um episódio da vida real, nos últimos dias, me fez repensar algumas questões. Fátima Bernardes propôs uma enquete em seu programa. A apresentadora mencionou uma cena do filme Sob pressão: médicos de um hospital precisam escolher se atendem um traficante, que está quase morrendo, ou um policial cujo quadro clínico é estável. Você atenderia primeiro o policial ou o traficante?
Foi um fuzuê. A hashtag #EuEscolhoOPolicial se alastrou pelas redes, e centenas de milhares de pessoas cobriram Fátima de insultos porque ela estaria "defendendo bandido". Jair Bolsonaro aproveitou para faturar em cima do caso e, num vídeo que distorcia todo o contexto, afirmou que a apresentadora preferia "dar mais atenção a um traficante ferido do que a um herói a nosso serviço". Em outro vídeo de audiência astronômica, um policial militar foi aplaudido ao propor com sarcasmo uma nova enquete:
– A gente queria perguntar para a Fátima o seguinte: suponhamos que ela fosse vítima de estupro, algo que a gente não quer que aconteça, mas que pode acontecer, e acabasse atingindo com uma faca o seu estuprador, deixando o cara gravemente ferido. Quem a ambulância deveria socorrer primeiro? Você ou o estuprador? Responde para a gente, Fátima. Estamos aguardando.
Perceberam a sordidez que engoliu a discussão? Ora, a enquete de Fátima Bernardes só teria uma resposta possível, caso fosse dirigida a médicos de verdade: o primeiro a ser atendido seria o traficante, não o policial. Consultei sobre isso o doutor Rogério Wolf de Aguiar, presidente do Conselho Regional de Medicina, o Cremers.
– O Código de Ética Médica determina que a prioridade no atendimento seja baseada em critérios estritamente técnicos. Portanto, neste caso, não se trata de um traficante e um policial, mas de uma pessoa que pode morrer e outra que não. Médico não é juiz. Não temos o direito de decidir se uma pessoa merece morrer ou viver. A prioridade é para o caso mais grave – disse Aguiar, e esse argumento já basta.
Mas aí vieram os sites de esquerda. Que chatice. Diziam que as ações da polícia militar só geram mais mortes e mais violência, diziam que os trabalhadores, os LGBTs e os negros é que sofrem com a insegurança, diziam que o sistema policial oprime apenas a juventude pobre. Quer dizer: a polícia, que sofre igualmente com a violência, para essa turma é um estorvo. Como o outro lado reage a isso? Com raiva. Da mesma forma que a esquerda reagiu com raiva à papagaiada populista de Bolsonaro e seus asseclas.
Acaba que o episódio pode ser resumido assim: contestada por um deputado louco, uma enquete louca enfureceu milhares de loucos que aplaudiram um policial louco e, para completar, tiveram de enfrentar a reação louca de um bando de loucos. Já adianto a minha resposta às mensagens que receberei dizendo que o louco sou eu: devo ser mesmo.
Beleza americana e Elle é que estavam certos. Somos todos uma corja de loucos.