Eu queria ser amigo dos traficantes. Eram os donos do morro, os chefes do poder, os populares da turma. Um adolescente como eu – de classe média e metido a rebelde, alvo de bullying e meio recalcado – almejava contato com gente mais popular. Então subimos a lomba da Vila Funil, eu e um vizinho que morria de medo, para comprar maconha a três quadras de casa.
– Qual é, sangue bom! – era assim que malandro falava nos anos 90. – Onde é que é a boca do Neném? – perguntava eu para quem passasse, e nos orientavam a continuar subindo.
Fomos adiante, empoeirando os Reeboks no chão batido, espremidos entre barracos que se amontoavam à direita e à esquerda. A vila inteira nos encarava, até os vira-latas. Não era o ambiente mais amistoso do mundo e, quanto mais subíamos, mais nos olhavam torto. Mais pareciam não gostar.
– E aí, sangue louco! – o meu amigo quis se enturmar. – O Neném fica por aqui?
E o sujeito nem disse nada, só apontou para um descampado, no topo do morro. Daquela distância, dava para ver uns cinco ou seis homens reunidos por lá. Fomos chegando, devagarinho, e, ainda de longe, notei que dois deles estavam sentados, mas ambos se levantaram assim que nos viram, e depois outros três, quatro, sete, oito, 10 surgiram detrás do grupo, e logo já havia uns 20 e, quando enfim nos aproximamos, Jesus amado!, vimos as armas.
– Cara, ferrou, vambora, olha ali, meu Deus, socorro, vambora! – meu amigo gemia, suava, tremia, ofegava.
– Se dermos as costas, vão nos matar – especulei, com o coração na goela. – Agora vamos em frente.
E fomos. Quatro deles, com pistolas na bermuda, nos cercaram com cara de mau, e um gordo se pôs na minha frente, posicionou o rosto a dois dedos do meu nariz, arregalou os olhos e me encarou com tanta fúria, mas tanta fúria, que senti vontade de chorar. Tentei uma frase de impacto:
– Quero papo reto com o Neném!
Eles se entreolharam e fizeram silêncio. Fiz bem em mencionar o Neném, pensei. Só que eles logo começaram a rir. A gritar de tanto rir. Chegavam a segurar a barriga, a jogar o corpo para trás – tinham mesmo achado graça da minha exigência.
– Quem é tu para falar com o Neném, playboy? – debochou um deles, já me expulsando com um pontapé na bunda, e nós descemos aquele morro correndo feito galinhas do Cidade de Deus.
Nunca mais quis ser amigo de traficante. E não muito depois larguei a maconha.
Dito isso, imagine se eu, bobalhão e inconsequente – como são bobalhões e inconsequentes alguns adolescentes – não fosse um guri de classe média. Digamos que eu morasse à beira da boca de fumo, como morava a menina de 16 anos estuprada em uma comunidade do Rio. Alguma dúvida de que eu seria mais próximo do tráfico do que manda o bom senso?
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E seria uma escolha minha ou uma imposição da sociedade? Decerto que uma escolha minha, ainda que, poucos anos depois, eu viesse a avaliar essa escolha como idiota. Porque fazer idiotices faz parte da adolescência – faz parte do aprendizado da vida. Nesse contexto meio óbvio, tem me assustado a frieza, a crueldade e a absoluta falta de empatia com que milhares de brasileiros adultos vêm se referindo àquela jovem carioca.
Toda essa aberração moral, que relativiza o estupro de uma garota de 16 anos porque ela seria drogada, bandida e promíscua – como se não fosse a idade de cometer burradas, e como se ninguém pudesse cometer burradas em qualquer fase da vida –, já se mostra tão grave quanto o estupro em si. Trata-se de uma violência cometida não por 30, mas por milhares ou milhões.
É evidente que há dúvidas se foram 30 homens que a violentaram. Mas só um estúpido, ou alguém que nada sabe daquele vídeo escabroso, poderia discordar de que houve um estupro – "atos libidinosos", como aponta a lei, já configuram estupro. Além de violarem uma menor desacordada, debocharam da menina e divulgaram o estupro na internet às gargalhadas.
Pode alguma coisa ser mais escandalosa do que essa? Pode: um pedaço do país achar que nem é tão escandalosa assim. O mesmo pedaço do país que teria aplaudido a minha morte, 20 anos atrás, se aqueles traficantes tivessem me apagado na Vila Funil.