Vi o primeiro colado num poste, na esquina da Mostardeiro com a Quintino: "Antena de 200 canais sem mensalidade", prometia o cartaz. Pedi para o taxista reduzir. Queria anotar o telefone direitinho, entender que promoção era aquela, mas o trânsito nos empurrou e fomos adiante.
- Isso aí é picaretagem - resmungou ele, o que me deixou meio constrangido, mas foi justamente o cheiro de falcatrua que me instigou.
Porque achei arrojado aquilo. Como podia alguém anunciar um serviço pirata assim, no meio da rua, numa esquina movimentada do Moinhos de Vento, como se oferecesse um pastel de carne ou um conserto de gaita, como se ninguém pudesse denunciá-lo ou localizá-lo a partir de um simples telefonema que...
- Tem outro ali! - avisou-me o taxista, e eu girei o pescoço com pressa, identifiquei os quatro primeiros dígitos, 9999, mas ainda precisava dos outros quatro e... - Mais um ali! - apontou-me ele de novo, então pude anotar os quatro últimos. - E na esquina também! - prosseguiu o motorista, e juntos contamos nada menos do que 25 cartazes idênticos até chegarmos ao meu destino, na Lima e Silva com a Lobo da Costa.
Desci do carro já telefonando. Quem me atenderia? Mais do que um arguto negociante, tratava-se de um dos maiores caras de pau da cidade. Alguém que sai dependurando convites à ilegalidade por todos os postes de Porto Alegre certamente já se convenceu da própria impunidade e da falência do sistema que deveria inibi-lo. Gostaria de entender sua cabeça.
Deu ocupado.
Liguei outra vez, e seguia ocupado e ocupado e ocupado de novo, atravessei uma hora inteira buscando contato sem sucesso, então concluí que, das duas, uma: ou algo dera errado em seu negócio, ou estava dando tão certo que a clientela mal lhe dava descanso. Cara, eu realmente estava curioso. Cheguei a pensar no que responderia se alguém atendesse aos berros, anunciando que "aqui é o policial Nunes, isto é uma interceptação telefônica e o senhor está encrencado", mas aí atenderam.
Chamava-se Kelly (a grafia estou supondo), e ela parecia com pressa.
- Por favor, Kelly, esses 200 canais que o cartaz anuncia...
- O aparelho com a instalação custa R$ 800. Tem Telecine, Premiere, HBO, canais adultos, Big Brother, todos eles. É a grade da Sky completa.
- E isso é legal? Quer dizer, não digo "legal" no sentido de "divertido", que isso imagino que seja.
- Não é legal nem ilegal, senhor. Nenhuma lei proíbe isso.
E a ligação caiu.
Que coisa. Fui procurar no Google e, no parágrafo 35 da Lei da TV a Cabo (8.977/ 1995), confirmei que "constitui ilícito penal a interceptação ou recepção não autorizada" dos sinais de TV por assinatura. Ou seja, Kelly parecia errada: há uma lei proibindo. Mas resolvi pesquisar decisões de juízes em processos sobre o assunto - sei que essa parte é meio chata, então serei breve - e quase tive um treco ao descobrir que nunca, jamais, em nenhum caso houve condenação contra usuários de serviços como o oferecido por Kelly. A sentença mais recente é do ministro Nefi Cordeiro, do Superior Tribunal de Justiça, na qual ele ressalta que "o dispositivo legal não previu a pena". Ficou claro isso?
É ilegal.
Mas não tem punição.
Quer dizer: não pode, mas, se fizer, não dá nada. Uma aberração completa.
Há um projeto de lei no Senado para corrigir essa anomalia, prevendo até dois anos de detenção a quem captar os sinais sem autorização. Mas, até o Congresso aprová-lo, continuarei sendo otário. Continuarei pagando mensalidade a uma operadora de TV que, é verdade, cobra caro demais, mas paga os direitos autorais a quem produz os programas a que assisto. E, ao pagar esses direitos autorais, faz com que os programas sigam existindo.
Portanto, se algum leitor contratou os serviços do cartaz, gostaria do fundo do coração de mandá-lo ao diabo que o carregue. Não me leve a mal, é que, mais do que tapear as operadoras, o espertalhão passa a perna em gente como eu. Gente que paga para os programas existirem enquanto o espertalhão só desfruta - enquanto o espertalhão se convence da própria impunidade e da falência do sistema que deveria inibi-lo.
Os cartazes continuam lá, transformando nossos postes em monumentos à vigarice. Que atração exercem sobre você? Para mim, eles vivem a gritar:
- Olha eu aqui, seu otário!