Professor da Universidade de Brasília e presidente do Instituto Brasileiro de Segurança no Trânsito, David Duarte Lima é um dos pesquisadores mais experientes e respeitados do país em matéria de mobilidade. Está prestes a concluir seu mais recente livro intitulado Por Que o Nosso Trânsito é um Caos, que deverá ser lançado até o fim do ano. Considera um retrocesso o veto do presidente Jair Bolsonaro aos novos pardais em estradas federais. Afirma que nenhum país do mundo conseguiu reduzir os acidentes e as mortes sem um sistema de controle rigoroso de excesso de velocidade.
Como o senhor avalia a decisão de suspender a instalação de 8 mil pardais em rodovias federais?
Nenhum país reduziu a mortalidade, o número de feridos e a violência no trânsito sem um controle severo de dois grandes fatores: velocidade e álcool. A velocidade é controlada de diversas formas, e uma delas é a fiscalização eletrônica, essencial e adotada no mundo todo. O pardal tem a intenção de controlar velocidade em toda a via. Quando o motorista não sabe onde está o pardal, ele modera a velocidade e segue o limite de segurança da via porque não sabe se está sendo fiscalizado ou não.
Quais são os riscos sem os pardais?
É um retrocesso porque os dispositivos são absolutamente essenciais para controlar a velocidade. Vi alguns vídeos feitos pelo presidente (Jair Bolsonaro), mostrando possíveis equívocos quando ele viajou do Rio de Janeiro para Santos. Segundo ele, a velocidade ali não precisaria ser tão baixa. Seria uma pegadinha ou uma forma de arrecadar recursos. Ele critica isso, e eventualmente, o presidente pode ter razão. É preciso que os órgãos técnicos, seja Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes ou Polícia Rodoviária Federal, verifiquem se há equívocos, porque isso pode ocorrer. É preciso corrigir. Agora, o que não se pode é jogar fora o bebê com a água suja. É preciso tirar a água suja e preservar o bebê.
Quais seriam esses equívocos no trajeto entre Rio e Santos?
A velocidade é um grande fator dos acidentes: quanto maior, mais graves são os acidentes.
DAVID DUARTE LIMA
Presidente do Instituto Brasileiro de Segurança no Trânsito
O presidente alega que ele estava num automóvel e que a velocidade (máxima) seria muito baixa, tendo em vista a velocidade de segurança do automóvel. Mas quando se colocam pardais ou faixas de proibido ultrapassar, o técnico verifica a velocidade mais adequada para todos os tipos de veículos, e não para um modelo específico de carro – um esportivo, uma Ferrari, por exemplo, que tem mais velocidade e mais segurança. Então, é por isso que a fiscalização às vezes “penaliza” alguns, mas protege a maioria, porque a velocidade de segurança para todos, eventualmente, pode ser mais baixa. O presidente deveria consultar os técnicos. Tenho conversado com colegas de universidades e técnicos de trânsito e é praticamente unânime a posição de que não se pode descartar o uso desses dispositivos nas rodovias. A velocidade é um grande fator dos acidentes: quanto maior a velocidade, mais graves são os acidentes.
O veto aos pardais pode terminar na Justiça?
É uma possibilidade. É obrigação do Estado promover a segurança de trânsito. Se você abandona um dispositivo como esse, que é um mecanismo para aumentar a segurança de trânsito, a Justiça pode acatar uma observação como essa. Tem um caminho jurídico. Espero, sinceramente, que o presidente consulte técnicos e reveja sua posição. O que deve realmente ser feito é observar onde há erros, onde há necessidade de novos pardais, uma fiscalização mais severa, quais são os pontos críticos e onde há acidentes por questões de excesso de velocidade. Agora, abandonar o medicamento que serve para a saúde de todos porque ele tem alguns poucos efeitos colaterais não é uma atitude sensata.
O presidente costuma dizer que há “indústria da multa”. O senhor concorda com isso?
As multas dão muito dinheiro para os Estados, os municípios e o governo federal. Realmente, a cobrança de infrações é uma atividade rentável para o Estado, digamos assim. Perguntei certa vez a uma pessoa que tinha servido como diretor do Detran do Distrito Federal: se todos os motoristas do DF se comportassem e não cometessem infrações, o que aconteceria com o Detran? Ele me disse que o órgão quebraria, que teriam grandes problemas financeiros porque (o departamento) vive em grande medida da arrecadação dos valores de multas. Agora, para quebrar esse sistema, é preciso que a gente tire o pé do acelerador, estacione direito etc. Há uma relação simbiótica ao contrário no seguinte sentido: o predador sobrevive da falha da vítima. É uma coisa muito ruim. O condutor que anda em excesso de velocidade é penalizado em qualquer lugar do mundo, deve ser multado também no Brasil. Mas isso não pode ser motivo de sobrevivência e ganância dos órgãos de trânsito. O interesse público é que todo mundo se comporte bem, a gente pagaria muito menos a conta no hospital. Por outro lado, existe realmente interesse de alguns órgãos de faturar.
O senhor pode citar o caso de algum país que venceu a chaga da violência no trânsito com o controle de velocidade eficiente?
A Europa como um todo é um bom exemplo. Mas um país que poderia citar como exemplo para o Brasil é a Espanha, que reduziu em 80% o número de mortes no trânsito em 10 anos.
E foi com controle de velocidade?
Grande parte disso, com controle de velocidade. Eles melhoraram a formação do condutor. O controle de velocidade não resolve tudo, mas é essencial. A Espanha melhorou em três medidas: formação do condutor, melhoria das vias – inclusive no meio urbano, na ligação entre cidades – e combate ao álcool. Houve campanhas e uma série de atividades. Isso é central em qualquer programa de governo. Fiz doutorado em segurança de trânsito e, em qualquer manual sobre redução de violência no tráfego, reduzir a velocidade no trânsito é essencial. Não tem condição de ter um guarda a cada quilômetro de rodovia. Por isso, esses equipamentos retiram o agente de trânsito da estrada e isso pode ser controlado à distância ou, eventualmente, como é feito no Brasil. O que precisa no governo é abrir os ouvidos um pouco mais para os técnicos e escutar. Há equívocos, sim. É inegável. Nossas rodovias são mal construídas. Há erros, falhas de geometria. Mas não é dessa forma de se resolve o problema, abandonando dispositivos que podem ajudar na segurança.
Por que o senhor acredita que nosso trânsito é um caos?
Porque temos motoristas mal formados. Hoje, seja dirigindo, caminhando ou pilotando uma moto, qualquer pessoa que passar duas horas no trânsito terá passado 60 horas (no tráfego) ao final do mês. Ao fim do ano, (serão) 720 horas. Ou seja, qualquer um que passe duas horas por dia no trânsito passa um mês completo (por ano). É muito tempo para a gente viver sem qualidade. É um caos porque a nossa infraestrutura é precária. Em alguns casos, rudimentar. Isso favorece a ocorrência de acidentes e colisões. Além disso, (o sistema de trânsito) é desigual, porque privilegia carros e veículos motorizados e abandona pedestres e pessoas com necessidades especiais ou com mobilidade reduzida. A formação do condutor é bastante ruim, incompleta, cheia de falhas. E, finalmente, o trânsito é um caos porque temos veículos sem quaisquer condições de circulação, que continuam andando nas ruas sem freios, sem condições de segurança para ele próprio (o motorista) e para os outros. Se tivéssemos adotado programas – como a Espanha adotou – de redução de violência no trânsito, em vez de 45 mil mortos (em média), teríamos menos de 10 mil. É preciso que a gente comece a copiar países onde a segurança de trânsito é levada a sério.