Não é Diana, é Daena mesmo, tira a mão daí revisor. Diana é minha mulher, anseio encontrá-la. Quanto a Daena, não quero conhecê-la tão cedo. Não é falta de curiosidade, mas só posso vê-la em uma condição específica: no último minuto do meu derradeiro dia no planeta. Aliás, não só para mim, isso é o destino de todos. Cada um de nós possui e, ao mesmo tempo gesta, a Daena que o espera.
Já explico, essa entidade foi descrita nos antigos cânticos do zoroastrismo, antiga religião monoteísta que influenciou todas as outras. É uma mulher belíssima que, acompanhada de seus cães, nos conduzirá à nova morada no além. Antes que penses que Daena é a rainha das fadas que vem te buscar, saiba que existem condições: a que te foi dada é linda, mas só se manterá bela caso tua vida tenha sido uma obra de justiça e ponderação; se foi uma vida de trapaças, mentiras e violência, a tua será uma bruxa disforme, mais feia que a mulher do medonho.
Recebemos nossa Daena ao nascer e dela nada podemos esconder. Ela é como um duplo, uma testemunha muda porém atenta, que vai sendo modelada pelos nosso atos. Não intervém na nossa vida, guarda-se toda para a terminal e apoteótica aparição. Podemos enfeá-la, torná-la bonita outra vez, mas sempre restarão as cicatrizes do que fizermos a ela. Daena é a história plástica da nossa vida moral. E é assim que seria explicado porque as mortes são ora suaves, ora agitadas, depende de como teria sido o encontro com ela.
Como vemos, associar beleza à virtude é prática de longa data. Neste caso, no mínimo dois milênios e meio, mas aqui um detalhe: só haverá beleza se houver virtude. Aqui a beleza não é grátis, só a sabedoria a garante.
Ignoro se Oscar Wilde conhecia essa história persa quando escreveu O Retrato de Dorian Gray. A julgar pela sua erudição, eu diria que sim, e essa obra seria uma versão laica desse estranho anjo, tão íntimo e tão distante de cada um.
Sei o que muitas leitoras devem estar pensando: não poderia ser, por acaso, um Daeno para mim? Infelizmente não é assim que funciona. Creio que, como viemos de uma mulher, e a mãe terra que nos acolhe, as figuras que lembram a morte costumam ficar no espectro do feminino, pois são as mulheres que guardam o mistério da fertilidade, portanto da vida e do seu fim.
Sempre acreditei que nosso medo da morte guarda mais mistérios que o mero horror ao desconhecido ou a angústia de deixar de existir. Daena vem associada a isso, mas vai além, encarna o pavor do encontro com nosso extrato moral, ao vermos quem realmente somos e o que fizemos com a vida que ganhamos. Na psicanálise, nos acostumamos à dor de mergulhar em nossas humanas misérias. A contragosto, entendemos por que enxergar a si mesmo, sem filtro ou maquiagem, pode muito bem ser equiparado à morte.