Depois de ver virtualmente frustrada a possibilidade de solucionar o caos venezuelano pelo referendo revogatório, a oposição venezuelana se mexe para correr por outras vertentes. O parlamento venezuelano, de maioria opositora, declarará nesta segunda-feira o presidente Nicolás Maduro em "abandono de cargo", na véspera de completar seu quarto ano de mandato, buscando abrir caminho a eleições antecipadas, embora as decisões legislativas sejam consideradas nulas pela Justiça dominada pelo chavismo.
Entenda, neste link, por que o referendo revogatório é, na prática, um instrumento já descartável a partir de uma manobra que culminou na indicação do novo vice-presidente. E sempre é bom lembrar: essa consulta popular, prevista constitucionalmente, é um recall legítimo de meio do mandato.
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A Assembleia Nacional, em sua primeira sessão de debates do ano, prevista para as 14h30min locais (16h30min de Brasília), discutirá como único ponto, segundo a agenda, "o exercício constitucional do cargo" de presidente "e a necessidade de abrir uma solução eleitoral à crise". São as alternativas alcançadas no fim de semana para substituir a estratégia do referendo.
Em interpretação particular do "abandono do cargo", a opositora Mesa da Unidade Democrática (MUD) acusa Maduro de descumprir deveres que afundaram o país em uma grave crise, com severa escassez de alimentos e remédios, além de uma inflação que é a mais alta do mundo e uma criminalidade esmagadora, comparável à de países em guerra.
O desabastecimento de alimentos e medicamentos atinge absurdos 80%, filas de sete horas circundam mercados, a inflação chega a 700% anuais.
- Por que não saímos desta crise? Porque Maduro não está governando com a Constituição, mas fora; está fazendo o que tem vontade. A Constituição fala do direito à alimentação, à saúde, à vida - argumenta Julio Borges, que assumiu na quinta-feira a presidência do parlamento, substituindo Henry Ramos Allup.
De acordo com a Constituição, se o Legislativo declarar a "falta absoluta" do presidente antes de cumprir seu quarto ano de mandato, serão convocadas eleições em 30 dias. Depois desse limite, ele é substituído pelo vice-presidente para completar os dois anos restantes do período presidencial.
Preparando-se para essa nova etapa de confrontação e ainda para o referendo revogatório, Maduro rearrumou na semana passada seu governo e nomeou o linha-dura chavista Tareck e-Aissami, 42 anos, como vice, a quem no domingo colocou à frente do que chamou de "comando antigolpe".
- Eu pergunto a Cejota - referindo-se às sobrancelhas de Borges - você está pronto para a guerra? - disse no domingo o presidente.
Analistas advertem para a enorme barreira com a qual a oposição pode se chocar: o Tribunal Supremo da Justiça (TSJ), que declarou o parlamento em "desacato" e considerou nulas todas as suas decisões, no clímax de um duro choque de poderes. A Justiça, acusada pela MUD de servir ao chavismo (é o "escritório de advocacia chavista"), declarou o parlamento em desacato por juramentar três deputados cuja eleição foi suspensa por suposta fraude, e, embora em novembro eles tenham se afastado voluntariamente, o TSJ exige que sua desvinculação seja formalmente votada no plenário legislativo.
Borges disse que a oposição pode dar o passo de desvincular os deputados "para destravar o caminho", mas isso não está previsto na agenda desta segunda-feira.
Para o constitucionalista José Ignacio Hernández, o fato de o TSJ desconhecer o Legislativo "bastaria para anular a declaração de abandono", razão pela qual, se essa situação não se solucionar, "nenhuma decisão jurídica da Assembleia permitirá realizar eleições".
- Para ser efetiva realmente deve vir acompanhada da nomeação de um TSJ que não esteja a serviço do Executivo. Será preciso ver se vem acompanhada de uma estratégia de rua que busque aumentar os protestos - afirmou à agência AFP Diego Moya-Ocampo, analista do IHS Markit Country Risk (Londres).
Salário mínimo
Como forma de reagir ao momento tenso vivido no país, Maduro anunciou aumento de 50% no salário mínimo, que sobe para 40.638 bolívares (US$ 60, na taxa oficial mais alta, e US$ 12 na cotação do mercado negro).
- Para começar o ano, decidi pelo aumento. Seria, se levarmos em conta o aumento que dei em janeiro de 2016, o quinto em um ano - disse Maduro, na primeira transmissão de 2017 de seu programa semanal no canal estatal VTV.
Percebam o discurso na primeira pessoa do singular!
Quando este colunista cobriu eleições venezuelanas, sempre chamou atenção que a TV pública tratava Maduro, da situação, como "candidato da pátria".
O salário é complementado com um bônus de alimentação de 63.720 bolívares (US$ 93, na taxa oficial). O aumento decretado inclui os aposentados.
Os aumentos sucessivos decretados pelo presidente foram devorados pela inflação e pela perda de valor do bolívar frente ao dólar.