"Abusa-se da palavra 'sonho' em relação a minha pintura", queixou-se certa vez o artista belga René Magritte (1898-1967). O célebre pintor e suas nuvens, chapéus, cortinas, maçãs, velas, cachimbos, corpos fragmentados, personagens ou pássaros – em suas mais variadas combinações – invadiram os espaços do Centro Pompidou, em uma ambiciosa exposição parisiense neste início de outono europeu. Magritte, a traição das imagens reúne uma centena de telas, desenhos e documentos de arquivos, sem, no entanto, se reivindicar como retrospectiva do pintor.
A ideia foi fazer uma abordagem inédita da criação de Magritte, explorando seu interesse pela filosofia e seu contato com pensadores, que culmina com a publicação do ensaio Isto não é um cachimbo (1973), do filósofo francês Michel Foucault – fruto de sua correspondência com o artista e um questionamento dos fundamentos da representação na arte.
– O público se interessou por mim por todo tipo de motivos que não são muito bons – lamentava Magritte.
Sua obra não era "onírica", defendia ele, mas bem o contrário. Tratava-se de "sonhos voluntários".
– Esta vontade que me faz buscar imagens consiste, sobretudo, em produzir o máximo de luz possível. Só posso trabalhar na lucidez. Chama-se isso também de inspiração. Nunca sonhei com quadros a executar. O mundo não se apresenta como um sonho em meu sono. Só posso "ver" uma tela quando estou totalmente desperto e disponho de um estado de espírito perfeito – confessou.
Reflexões à parte, o singular humor de Magritte está lá exposto nas salas do Centro Pompidou, para quem quiser ver, até 23 de janeiro de 2017.
Código de outono
Nesta recém-inaugurada estação outonal, vale lembrar os célebres versos do poeta francês Paul Verlaine (1844-1896) – na efeméride dos 120 anos de sua morte –, também musicalmente imortalizados em diferentes versões nas vozes de Charles Trénet, Georges Brassens, Léo Ferré ou Serge Gainsbourg. O poema Canção de outono se tornou conhecido por ter sua primeira estrofe usada como uma das centenas de mensagens codificadas para anunciar à Resistência francesa, pelas ondas da BBC, o desembarque iminente das forças aliadas na Normandia, no dia 6 de junho de 1944, o Dia D da II Guerra Mundial. Nas noites de 1º, 2 e 3 de junho, a transmissão do trecho inicial , "Les sanglots longs/Des violons…", ordenava a aceleração das operações de sabotagem ferroviária. Em 5 de junho, às 21h15min, a parte final, que se encerrava por "D'une langueur monotone", prevenia os resistentes de que o ataque aliado ocorreria nas próximas horas.
Chanson d'automne (Canção do outono)*
Les sanglots longs (Os longos trinos)
Des violons (Dos violinos)
De l'automne (Do outono)
Blessent mon cœur (Ferem minh'alma)
D'une langueur (Com uma calma)
Monotone. (Que dá sono.)
Tout suffocant (Ao ressoar)
Et blême, quand (A hora, alvar)
Sonne l'heure, (Sufocado)
Je me souviens (Choro os errantes)
Des jours anciens (Dias distantes)
Et je pleure. (Do passado)
Et je m'en vais, (E em remoinho)
Au vent mauvais (O ar daninho)
Qui m'emporte (Me transporta)
Deçà, delà, (De cá pra lá)
Pareil à la, (De lá pra cá)
Feuille morte. (Folha morta)
*Tradução de Paulo Mendes Campos.
Inspiração berlinense
Paris, cada vez mais, tem visto surgir espaços efêmeros de inspiração na capital alemã, Berlim. É o caso do recentemente inaugurado La Friche (66, bulevar Richard-Lenoir, 75011), aberto todos os dias do meio-dia às 21h. Os 2.885 metros quadrados do local – uma antiga garagem da Mercedes – acolhem dois grandes bares a céu aberto, de 400 lugares sentados, com wi-fi gratuito e vista para a igreja Saint-Ambroise. Há também food trucks, cancha de bocha, mesa de pingue-pongue, jogos para crianças, uma "horta pedagógica", galinhas e coelhos. Nos fins de semana, estão programados concertos de jazz, folk e música clássica. O La Friche, que se reivindica "ecorresponsável" – com operação autossustentável –, funcionará até o dia 5 de novembro.