Davi Windholz, 61 anos, é um homem de nacionalidades brasileira e israelense. Judeu, psicólogo, pedagogo e de formação lapidada nos movimentos juvenis sionistas, ele tem sido uma das vozes mais eloquentes a favor da pacificação e, mais que isso, da conciliação que possibilite a solução de dois Estados lado a lado, o de Israel e o da Palestina. Mas a mensagem que Windholz trouxe ao Brasil na última semana, quando esteve em Porto Alegre, São Paulo, Curitiba, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, vai além. É a de "dois Estados, uma pátria". Em Porto Alegre, no último dia 16, ele fez a palestra "Quebrando os muros do conflito" na Faculdade de Educação da UFRGS.
– Acredito que a saída de dois Estados e uma pátria, em que israelenses e palestinos possam transitar nos lugares sagrados para judeus e muçulmanos, é a solução ideal – diz o brasileiro natural de São Paulo, que vive na cidade israelense de Naharyia e fundou, em 2008, o centro "Alternative for Peace" (Alternativa para a Paz), dedicado a desenvolver, entre outros projetos, colônias de férias conjuntas de crianças judias e árabes.
Ao falar sobre sua ONG, Windholz, que vive em Israel desde 1973, é casado e tem três filhos, dá o tom do pluralismo que procura empregar ao "reunir crianças judias, árabes, muçulmanas, cristãs, drusas, israelenses e palestinas, para criar um contato entre elas para e romper com estereótipos". O objetivo básico: ensinar as crianças a considerarem o outro como seu semelhante.
– Quanto mais cedo trabalharmos com as crianças, melhor – diz ele.
É a mesma linha da célebre frase cunhada pelo líder sul-africano Nelson Mandela, segundo o qual, "Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar".
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Em Israel, no ano passado, Windholz promoveu um encontro, em Tel-Aviv, entre pacifistas e os músicos brasileiros Gilberto Gil e Caetano Veloso, que se apresentaram na cidade israelense.
Na vinda de Windholz a Porto Alegre, ele conversou com Zero Hora e expôs as ideias pelas quais acredita ser possível a criação de laços em uma região tão castigada pelas hostilidades e pela violência.
Leia a entrevista:
"Sem um processo educativo, nada mudaremos"
Como estão suas iniciativas de convivência pacífica em Israel?
Temos várias iniciativas. Uma é a ONG, que é um trabalho educacional. O outro trabalho é mais político. É um movimento novo que surge em Israel e na Palestina, que é o movimento Two states, one homeland. Em Porto Alegre, por exemplo, tivemos um evento muito bom. O diálogo com um palestino, com quem trabalho há muito tempo junto aqui, o Malek Rashid.
Se formos olhar sem sem pensar nas questões políticas, parece simples a divisão entre dois Estados, com Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental ficando na Palestina e se estabelecendo a paz entre os dois Estados. Quais os principais motivos para a questão não ser resolvida?
Há vários motivos. O primeiro motivo é que hoje nós estamos com dois governos, tanto israelense quanto palestino, a quem lhes convém a situação atual para se manter no poder. Essa situação de tensão e de guerra constante a cada quatro ou cinco anos, essa semi-guerra – porque não é uma guerra total –, faz com que os poderes político, econômico e religioso se mantenham no poder dos dois lados. Enquanto não houver uma troca de poder político em Israel, principalmente em Israel, essa situação não vai mudar. Mas também do lado palestino, enquanto continuar essa situação entre Fatah e Hamas, enquanto não se chegar a um acordo entre eles e não se criar realmente um governo único que baixe as armas das falanges palestinas, o outro lado também não conseguirá se organizar a ponto de criar um processo de paz.
Existe uma facção do Hamas que reconheceria o Estado de Israel?
Neste momento, não. Talvez, em um momento futuro, ocorra como ocorreu com o Fatah, que era um movimento armado, militar, e se transformou em um movimento que baixou as armas, declarou que a luta armada estava encerrada e que a diplomacia é o caminho para o estabelecimento do Estado Palestino. Eu imagino que em algum momento o Hamas vá chegar a isso.
Mas se fala em movimentos mais moderados dentro do Hamas.
Todos esses movimentos que são chamados de terroristas – e a definição de terrorismo é muito ambígua, se não incluiria um Estado armado, qualquer movimento tem um setor diplomático. O Hamas tem um setor diplomático, mas eles ainda acreditam que a luta armada é a solução, e a destruição do Estado de Israel é a solução. Por enquanto, não vejo uma solução nesse sentido. Mas o problema da solução de dois Estados é que faz 20 anos que estamos tentando essa solução e encontramos problemas. Por isso, o movimento Two states, one homeland.
Como funcionaria? Como se manteria a identidade de cada um?
A questão é que "dois Estados" implica não levarmos em conta as narrativas sionistas e as narrativas palestinas e as necessidades de cada um desses povos. A nossa ideia é de que a narrativa sionista ou do povo judeu, está totalmente vinculada à Judeia e a Samaria (a Cisjordânia), com os territórios que estão na Palestina. São lugares religiosos, da História. Então, você cortar isso do povo judeu, do setor religioso tradicional judaico, é como ampurar um braço ou uma perna, tirar a possibilidade de o povo judeu estar em contato com esses territórios. E o mesmo ocorre do lado palestino. Se você corta Haifa, Ashkelon, se você corta isso dos palestinos, você também está cortando parte da narrativa. Então a ideia é não fazer dois Estados divorciados, mas sim dois Estados confederativos, uma espécie de união como a União Europeia, em que você tem livre acesso entre um país e outro, um cidadão palestino pode viver em Israel desde que acate as leis Israel e em que um israelensa possa viver na Palestina desde que acate as leis palestinas. Seriam dois Estados independentes com fronteiras na linha de 1967, com Jerusalém internacionalizada, os colonos judeus continuando na Palestina, mas quem morar lá será cidadão israelense residente na Palestina, acatando as leis palestinas em relação a tudo, em relação a impostos, à ordem civil. As autoridades a quem terão de se dirigir são as autoridades palestinas, o governo palestino. E a mesmo coisa ocorreria em relação aos palestinos que vivem na chamada diáspora palestina.
Haveria uma governança dessa confederação?
Haverá quatro pastas nessa união, nessa confederação. A primeira seria a segurança, para garantir que nenhum movimento terrorista entre nas fronteiras de Israel e Palestina. A segunda seria a governança, para manter um tribunal para direitos civis dos israelenses que vivam na Palestina e dos palestinos que vivam em Israel. A terceira é a economia, porque esse plano só vai dar certo se houve um Plano Marshall na Palestina, para levantar a economia palestina, talvez com uma moeda única e cooperações, com regiões industriais e assim por diante. O quarto ministério seria de infraestrutura, que são estradas, ferrovias, eletricidade, a questão da água, que é um dos principais problemas do Oriente Médio. Quando se fala em "dois Estados", como se fala hoje, pensa-se em uma ponte entre Cisjordânia e Gaza. No momento em que se tem dois Estados e uma pátria, isso deixa de ser importante. O palestino que mora em Gaza pode entrar em Israel e passar normalmente para a Cisjordânia.
Seria exequível um plano assim para breve?
Logicamente, não é plano para daqui a um ano e teria condições. A primeira é que haja uma união entre os palestinos de Hamas e Fatah e que as falanges palestinas baixem as armas e se crie um exército palestino.
Na Colômbia, onde há um processo de paz, famílias estão superando ressentimentos. Isso poderia ocorrer com israelenses e palestinos?
Não conheço bem o caso colombiano. Mas é importante que se diga uma coisa: uma acordo de paz não é suficiente. É necessária uma reconciliação. O principal é a reconciliação. Sou o coordenador da comissão de educação e juventude do movimento, e o nosso objetivo é criar projetos com juventude, com estudantes, na área de reconciliação. Esse é o primeiro processo, de mudar a estrutura educacional dos dois países e transmitir uma antidemonização, ou uma humanização do inimigo. O que existe até hoje é uma demonização mútua do inimigo. Você pega os livros palestinos e israelenses nas escolas e vê um demonizando o outro. Você precisa reconhecer o outro e virar a página.
Esse processo precisaria de tempo, não?
Talvez daqui a 30 ou 40 anos uma nova geração possa fazer uma análise mais objetiva. Hoje em dia, na nossa subjetividade, é difícil. Hoje, temos a ideologia do medo, o medo está no nosso DNA, assim como a desconfiança. Então, todo esse processo de rehumanizar as relações de israelenses e palestinos faz parte do acordo de paz.
O movimento funciona onde e como?
Funciona em Tel-Aviv e em Ramala. E uma das coisas que tem conseguido é romper a dicotomia de esquerda e direita, religiosos e laicos. Há conceitos ultrapassados. Estamos entrando em uma nova forma de sociedade, que é sustentável, com economias colaborativas. Precisamos entender que vivemos um momento de transformação e que o acordo de paz entre Israel e Palestina só será possível se tivermos em mente uma união colaborativa entre os povos. Do contrário, continuaremos vivendo nos séculos 20 e 19.
O mundo está muito intolerante, com antissemitismo e islamofobia em alta. Isso não prejudica? Você é israelense, judeu e sionista. Não sente isso?
Há uma genofobia, eu diria assim. Dentro disso, o antissemitismo, que é muito enraizado, retorna a suas origens. Por isso, é importante separar a crítica ao governo de Israel, ao sionismo e à questão do antissemitismo. Sou sionista, humanista, tenho uma organização pró-paz e pró-Estado Palestino, minha luta é uma organização que trabalha com crianças e jovens bilíngue, que fala árabe e hebraico, reconhecemos e ensinamos as duas narrativas. Aí, tem sempre alguém que pergunta se eu sou sionista ou pró-Palestina, e aí eu explico que o sionismo é o movimento de libertação do povo judeu. Ponto. Como você vai levar a prática o sionismo, é outra pergunta. Há o sionismo de esquerda, o sionismo até mesmo comunista, que eram os kibutzim de movimentos juvenis como Hashomer Atzair e o Habonim Dror. Na essência, não era nem socialista, era comunista mesmo, levado ao extremo, sem sociedade privada. Então, temos os sionismos socialista, humanista, religioso e revisionista. O sionismo religioso e o revisionista são colonizadores, querem a grande Israel. Os outros não, os outros são a favor de dois Estados, um judaico e um palestino. Aí, as pessoas me dizem que esse não é o conceito de sionismo, que seria colonialismo e racismo. Então, é importante explicar para esclarecer essa ignorância em relação ao sionismo. No movimento de libertação palestina, você também tem o Hamas e o Fatah. O Fatah é a favor de dois Estados. O Hamas quer a destruição do Estado judaico. O Hamas pode ser comparado à extrema direita de Israel.
Nas suas palestras, você procura esclarecer isso?
Sim e vejo que as pessoas entendem isso. Nas minhas palestras, costumo colocar em um quadro negro a forma como ocorrem as demonizações. De um lado, é o judeu sionista colonialista. De outro, o palestino terrorista. Essas são as duas narrativas, simplificadas e esteriotipadas. Sem um processo educativo, nada mudaremos. Moisés andou com o povo judeu durante 40 anos no deserto não porque ele quis. Ele podia chegar em um mês do Egito a Israel. Levou 40 anos porque era necessário mudar uma geração, com o fim de uma geração que havia sido escravizada e o surgimento de uma geração que nasceu livre. Talvez tenhamos que para vir a geração que não nasceu em meio ao ódio, à desconfiança e ao medo. Quando eu e o Malek Rashid participamos de um evento como o que ocorreu em Porto Alegre, nós esclarecemos que aquilo não é um debate, é um diálogo. Acho que há uma perspectiva de isso ser entendido, e vocês, da mídia, são importantes para isso. O discurso do governo de Israel é o de falar a sua narrativa. O discurso dos palestinos também costuma ser assim. A mídia precisa começar a trabalhar mais com os setores moderados judaicos e palestinos. Precisam entender que é possível haver um movimento pró-Israel e um movimento pró-Palestina ao mesmo tempo. Queremos a criação do Estado palestino e o direito dos judeus de terem o seu próprio Estado. E queremos isso pelo diálogo, pela palavra.