O acordo assinado ontem em Cartagena vai muito além da pacificação colombiana, o que por si só já é uma grande conquista. O Alto Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur), por exemplo, celebrou o evento o definindo como "um momento histórico" em que os colombianos demonstraram sua disposição em "encontrar soluções por meio do diálogo e da reconciliação" para um conflito que já dura mais de 52 anos.
O acordo, produto de esforço entre governo e Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), põe fim a um conflito armado que custou a vida de mais de 220 mil colombianos e obrigou mais de 7,4 milhões a abandonar seus lares.
O Representante do Acnur na Colômbia, Jozef Merkx, sublinha que o acordo é um dos mais amplos e abrangentes já criados no mundo.
- Esse documento engloba temas de crucial importância para a construção de uma paz duradoura e exemplar, porque foi elaborado com a participação ativa das vítimas do conflito, com o objetivo de oferecer respostas concretas às suas necessidades - observou. - A assinatura é o começo de um longo caminho para a construção da paz que requererá um esforço coletivo para assegurar que todas as vítimas, pessoas deslocadas e refugiados gozem de seus direitos humanos.
Desde 1999, o Acnur tem acompanhado as pessoas que se viram forçadas a abandonar tudo para salvar suas vidas. Por elas, Merkx destacou:
- A construção de uma paz duradoura na Colômbia depende da reintegração das mais de 7 milhões de pessoas deslocadas pela violência. O Acnur reitera sua disposição e interesse em ajudar os deslocados internos e os refugiados para que retornem, regressem e se integrem efetivamente seguindo um enfoque com base nos direitos e na comunidade. Ao alcançar essas soluções duradouras, serão estabelecidas condições seguras e dignas para as vítimas que contribuirão substancialmente para a recuperação do país e da paz sustentável.
O representante do Acnur ainda enfatizou que pôr fim ao fenômeno do deslocamento requer ações de desenvolvimento que beneficiem tanto quem fugiu de suas casas quanto as comunidades que acolheram essas pessoas.
Merkx sublinhou que, para garantir o bem-estar e a proteção dessas pessoas, "é indispensável garantir-lhes o acesso a um lugar seguro, serviços básicos, emprego e geração de renda". Nesse contexto, indicou que será fundamental oferecer assistência e acompanhamento a mulheres, meninos, meninas, jovens, comunidades indígenas e grupos afros, pois são os que estarão mais expostos durante esses períodos de reconstrução e reajuste.
- É importante também lembrar que o acordo de paz foca principalmente nas zonas rurais, enquanto a maioria dos deslocados internos vivem em zonas urbanas, e também requerem apoio e assistência, em particular no que diz respeito a legalização dos assentamentos informais, onde muitos deles vivem, para garantir seu sustento e o acesso aos serviços básicos disse Merkx.
O Acnur tem atuado na Colômbia durante muitos anos nas regiões mais afetadas pela violência e o conflito armado, nas quais construiu relações estreitas com as comunidades, apoiou seu fortalecimento, trabalhou na reconstrução do tecido social e estabeleceu um alto nível de confiança mútua.
- Estaremos felizes em compartilhar capacidades e experiências com o governo colombiano para apoiar o processo de construção de paz - concluiu Merkx.
No Exterior, exemplo a ser seguido
A organização separatista armada basca ETA elogiou o acordo colombiano e lamentou que Espanha e França não tenham alcançado com o grupo algo parecido. Em comunicado publicado em basco no jornal Gara, o ETA considera que os governos francês e espanhol demonstraram uma atitude "mais que pobre", que contrasta com a conclusão do processo de paz da Colômbia, que acaba com mais de 50 anos de conflito.
O dia 20 de outubro vai marcar o quinto aniversário desde que o ETA anunciou que renunciava definitivamente à luta armada, depois de 40 anos de atentados, sequestros e campanhas de extorsão que provocaram as mortes de 829 pessoas.
A organização armada aproveitou a oportunidade para reafirmar a decisão de 2011 de buscar a independência de maneira pacífica, ao ressaltar que essa via é "o único norte da militância do ETA". Pediu a seus partidários "paciência estratégica", já que "a fragilidade política daqueles que negam nossa condição de nação e o direito a decidir dos cidadãos bascos é cada vez mais evidente".
Madri e Paris insistem que a organização deve ser dissolvida e entregar as armas. Mas o ETA deseja negociar uma anistia ou, pelo menos, uma medida para reagrupar os presos espalhados pelas penitenciárias dos dois países, uma questão que deve ser tratada "com a urgência que merece", afirma o comunicado divulgado nesta terça-feira. De acordo com o grupo Etxerat, há 368 prisioneiros "políticos" bascos. Do total, três estão detidos no País Basco, 281 dispersados em 42 prisões da Espanha, 79 em 24 prisões na França, um em Portugal, outro na Suíça e três em detenção domiciliar por motivos humanitários.
O comunicado foi divulgado dois dias depois das eleições regionais no País Basco, vencidas com grande maioria pelos dois partidos nacionalistas, o Partido Nacionalista Basco (PNV), que pede mais autonomia em relação a Madri mas não a independência, e o EH Bildu, separatista. Os socialistas do PSOE e o conservador Partido Popular (PP) ficaram longe, na quarta e quinta posições, respectivamente. O terceiro mais votado foi o partido de esquerda Podemos, que defende a convocação de um referendo sobre a independência da região.
A publicação do texto coincide com o aniversário das últimas execuções realizadas em 1975 pela ditadura de Francisco Franco.
A cerimônia histórica
Com uma cerimônia solene, a Colômbia firmou ontem, na cidade de Cartagena, um histórico acordo de paz com a guerrilha das Farc, para acabar com um conflito de mais de meio século. O presidente Juan Manuel Santos e o principal líder das Farc, Rodrigo Londoño, mais conhecido por seus nomes de guerra Timoleón Jiménez e Timochenko, assinaram o pacto anunciado em 24 de agosto, após quase quatro anos de negociações em Cuba.
- Membros das Farc, hoje, quando empreendem seu caminho de volta à sociedade, quando começam seu trânsito para se converter em um movimento político sem armas, seguindo as regras da justiça, verdade e reparação contidas no acordo, como chefe de Estado desta pátria que todos amamos, lhes dou as boas-vindas à democracia - disse Santos em seu discurso.
- Trocar as balas por votos, as armas por ideias, esta é a decisão mais valente e mais inteligente que pode tomar qualquer grupo subversivo - acrescentou, para completar. - Prefiro um acordo imperfeito que salve vidas a uma guerra perfeita que siga semeando morte e dor em nosso país, em nossas famílias.
Santos exortou os colombianos a votar no próximo domingo no referendo que dará o aval ao acordo de paz.
- Com seu voto, cada colombiano terá um poder imenso: o poder de salvar vidas, o poder de deixar para seus filhos um país tranquilo.
Para entrar em vigor, o acordo deve ser aprovado em um plebiscito convocado para 2 de outubro. As pesquisas indicam a vitória do 'Sim'.
Em seu discurso, Rodrigo Londoño declarou que as Farc "renascem para promover uma nova era de reconciliação e construção da paz".
Citou o escritor colombiano Gabriel García Márquez ao dar boas-vindas a "esta segunda oportunidade sobre a terra" e se desculpou com as vítimas do conflito:
- Em nome das Farc, peço sinceramente perdão a todas as vítimas do conflito por toda a dor que causamos nesta guerra.
E ainda disse:
- Que ninguém duvide que vamos para a política sem armas, preparem-se todos para o desarmamento de corações e mentes - disse Londoño, que agradeu Santos por sua "provada vontade de construir o acordo hoje firmado, uma vitória da sociedade colombiana em seu conjunto e da comunidade internacional.
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Em um importante sinal de que quer o exemplo colombiano seguido mundo afora, o ex-líder das Farc exortou 'paz negociada para os conflitos em Israel, na Síria e no mundo inteiro".
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Quase 2.500 pessoas vestidas de branco, de acordo com o protocolo, incluindo líderes mundiais e 250 vítimas do conflito, acompanharam os discursos daqueles que, inimigos por décadas, conseguiram o que parecia impossível: acabar com a violência fratricida entre guerrilhas, paramilitares e agentes do Estado que deixou 260 mil mortos, 45 mil desaparecidos e 6,9 milhões de deslocados em 52 anos. O ato foi assistido por 15 chefes de Estado, entre eles o cubano Raúl Castro, anfitrião das conversações de paz, que também foram mediadas por Noruega, Venezuela e Chile; o chefe da diplomacia americana, John Kerry; o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon; o rei emérito da Espanha, Juan Carlos, e vários representantes de organismos internacionais.
O acordo de paz, um texto de 297 páginas que essencialmente busca mudar "balas por votos", promovendo o desarmamento da guerrilha e sua transição para a vida política legal, foi assinado com uma caneta esferográfica montada com balas do conflito armado. O dia começou com uma homenagem à força pública, a quem Santos agradeceu "seu sacrifício e seu valor". Na Igreja de San Pedro Claver, o cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano e enviado do papa Francisco para o ato, presidiu "uma oração pela reconciliação de todos os colombianos", que se repetiu em todos os lugares de oração do país.
Em Bogotá, centenas de pessoas assistiram a um "show pela paz" na praça central de Bolívar, de onde puderam acompanhar a assinatura em um telão.
- É um acordo muito completo, e implementar o que foi negociado em reforma agrária, luta contra o narcotráfico, inclusão dos ex-guerrilheiros em processos políticos, e aplicação da justiça transicional vai exigir muita liderança - afirmou o chanceler norueguês, Borge Brende.
O pacto foi ratificado na sexta-feira passada pela Farc - que nasceu de uma revolta camponesa em 1964 e atualmente conta com 7 mil combatentes - após inédita conferência nacional guerrilheira autorizada pelo governo e aberta à imprensa em El Diamante, área remota do sul do país.
A paz na Colômbia não estará completa, no entanto, enquanto permanecer ativo o Exército de Libertação Nacional (ELN), segunda maior guerrilha do país, também criada em 1964. O ELN e o governo anunciaram em março a intenção de criar uma mesa formal de diálogos similar a das Farc, mas isso ainda não foi concretizado ante a reticência do grupo armado a abandonar a prática do sequestro, condição imposta por Santos. A guerrilha guevarista anunciou uma trégua unilateral, vigente de 30 de setembro a 5 de outubro, para facilitar a participação cidadã" no plebiscito. "Um gesto positivo" segundo o governo.
O acordo também é fortemente criticado pela oposição liderada pelo ex-presidente Álvaro Uribe, que na segunda-feira acompanhava em Cartagena um protesto que rejeita a assinatura.
Dia D
- O dia D é hoje - destacou Humberto de la Calle, chefe negociador do governo nos diálogos com a guerrilha.
A importância de definir qual é o Dia D é que a partir dessa data devem começar a desocupar corredores para que os guerrilheiros avancem até as zonas de concentração previstas para a deposição das armas e posterior reinserção na vida civil. Aos cinco dias do Dia D, as Farc têm que entregar à ONU, que supervisionará o desarme, informações sobre seu armamento e, aos 10, colaborar com dados de seus depósitos de armas artesanais.
Para os 60 dias do Dia D o armamento artesanal tem que estar destruído, aos 90 dias 30% dos guerrilheiros entregarão suas armas em contêineres vigiados pela ONU, outros 30% aos 120 dias e os 40% restantes aos 150 dias. Aos 180 dias do Dia D, a ONU retirará os contêineres das zonas e considerará finalizado o desarmamento.
Mas...
os dirigentes das Farc insistem em que a concentração de guerrilheiros não será iniciada até que seja aprovada a lei de anistia, que o governo se comprometeu a apresentar ao Congresso logo que o acordo fosse ratificado pelos colombianos.
- Sem a lei de anistia e indulto, é difícil que a guerrilha comece o movimento de seus efetivos para as áreas de paz ou para os pontos transitórios de normalização - disse há alguns dias o chefe negociador das Farc, Iván Márquez.
Mas De la Calle descartou que haja qualquer problema nesse sentido.
- Domingo, tivemos uma conversa com eles que rendeu bons frutos - disse De la Calle. - Creio fracamente que aqui não há uma grande preocupação.
Indicou que o governo prepara as leis que deverão ser aprovadas no Congresso, entre elas a de anistia.
- Prefiro me ater ao escrito, é a recomendação que Nelson Mandela fazia: "Fixe-se nos textos" - indicou. - Me parece que os textos são claros e o que há aqui é uma necessidade de sincronizar ações mútuas.
Palavras de conciliação
As palavras de Juan Manuel Santos foram de conciliação:
- Membros das Farc, hoje, quando empreendem seu caminho de volta à sociedade, quando começam seu trânsito para se converter em movimento político sem armas, seguindo as regras da justiça, verdade e reparação contidas no acordo, como chefe de Estado desta pátria que todos amamos, lhes dou as boas-vindas à democracia. - Trocar balas por votos, armas por ideias, esta é a decisão mais valente e mais inteligente que pode tomar qualquer grupo subversivo.
E continuou:
- Prefiro um acordo imperfeito que salve vidas a uma guerra perfeita que siga semeando morte e dor em nosso país, em nossas famílias.
Santos sublinhou que os representantes das Farc "foram dignos negociadores na mesa de conversações", quando "trabalharam com seriedade e vontade, sem as quais teria sido impossível chegar a este momento".
Exortação ao referendo
O presidente exortou os colombianos a votar domingo no referendo que dará o aval ao acordo de paz.
- Com seu voto, cada colombiano terá um poder imenso: o poder de salvar vidas, o poder de deixar para seus filhos um país tranquilo.
Ingrid Betancourt
A ex-refém da guerrilha das Farc, Ingrid Betancourt, disse sentir "um alívio muito grande, como o final de um pesadelo" e considerou que a assinatura do acordo de paz "é um momento extraordinário".
- Sinto um alívio muito grande, como o final de um pesadelo. Felizmente terminou!", disse Betancourt por à agência de notícias AFP.
E continuou:
- Não há euforia, já que há muito cansaço. Foi longo! Mas também há um sentimento de que o trabalho foi feito, de que se fez o que se tinha que ser feito.
Betancourt disse ter refletido muito, mas desistiu de ir à cerimônia.
- Aina há muitas emoções contraditórias, dor - explicou a ex-refém. - Eu não queria contaminar a felicidade dos demais.
Ingrid Betancourt, 54 anos, era candidata do partido ecologista colombiano quando foi sequestrada, em 2002. Passou seis anos em poder das Farc, até ter sido liberada, junto a outros quatro reféns, em uma operação do exército. Atualmente vive entre Oxford (Inglaterra), onde faz doutorado em Teologia; Paris e Estados Unidos, onde reside seu filho.
OEA festeja
O secretário geral da Organização de Estados Americanos (OEA), Luis Almagro, celebrou a assinatura do acordo histórico que põe fim à guerra entre a Colômbia e a guerrilha Farc. "Hoje é um dia que o mundo não esquecerá. O Acordo de Paz na Colômbia é um rito que todos os países do hemisfério e do mundo aplaudem", afirmou Almagro em comunicado. "A paz para a Colômbia é a paz para todos", disse o chefe do organismo regional, felicitando o presidente Juan Manuel Santos e os líderes das Farc "pelo empenho e a convicção de pôr fim a mais de meio século de confronto armado, através do diálogo".
"A Colômbia demonstrou que, quando o diálogo está orientado a obter resultados, as convicções são fortes e o objetivo é superior, o impossível se torna realidade", disse Almagro.
A máxima autoridade da OEA reiterou que o organismo hemisférico continuará sua assistência à Colômbia durante o pós-conflito.
Grande notícia para a "pátria grande"
- A paz na Colômbia é a melhor notícia para a Pátria Grande, para a América Latina, nas últimas décadas - disse Rafael Correa, presidente do Equador.
Todos vestidos de branco, diversos chefes de governo latino-americanos tiveram a oportunidade de se encontrar e conversar. Estavam lá Michelle Bachelet (Chile) e Nicolás Maduro (Venezuela) - países observadores do processo -, Mauricio Macri (Argentina), Pedro Pablo Kuczynski (Peru), Rafael Correa (Equador), Enrique Peña Nieto (México), Juan José Varela (Panamá) e Horacio Cartes (Paraguai), além do mandatário colombiano, Juan Manuel Santos, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, o secretário de Estado americano John Kerry e o líder das Farc, Rodrigo "Timochenko" Londoño.
- Sentimos que começa um novo momento na América Latina, e a paz na Colômbia é parte desse novo momento - disse o presidente peruano.
Também se juntaram a eles o ex-secretário-geral da ONU Kofi Annan, o atual, Ban Ki-moon, e o ex-presidente mexicano Ernesto Zedillo.
O presidente colombiano cumprimentou a todos, mas deu especial atenção ao ex-mandatário Belisario Betancur, 93 anos. Presidente entre 1982 e 1986, Betancur fez as primeiras tentativas de negociar um acordo de paz com a guerrilha, além de ter enfrentado anos duros da Colômbia.
O melhor acordo possível
A Colômbia, que no próximo domingo se pronunciará nas urnas sobre o acordo de paz selado com as Farc, deve saber que este pacto "é o melhor possível" e que não pode ser renegociado, disse o líder do governo nos diálogos com esta guerrilha. Humberto de la Calle, o advogado que liderou a delegação do presidente Santos nas negociações com as Farc, foi categórico:
- Esta é a oportunidade de parar de nos matarmos pelas ideias.
Sobre o referendo do próximo domingo, ele disse:
- Gostaria que a pessoa que votar "Não" esteja consciente das consequências: o processo de paz termina. Não pode acontecer conosco o que houve com o Brexit, que as pessoas se surpreendam no dia seguinte. Não compartilho a ideia de que o "Não" vence e vamos negociar de novo. Esta é a oportunidade. A história mostra que, depois de uma ruptura, as partes retornam as suas posições mais radicais iniciais. Votar "Não" acreditando que voltaremos a corrigir o que quisermos é uma ilusão. Este é o melhor acordo possível.